29/04/2006
Ano 9 -
Número 474
- A ditadura televisiva
- A voz do vento
|
Enéas Athanázio
ALGUM MORTAL EM MEIO
À HUMANA LIDA...
|
|
Para arrefecer o orgulho humano há quem recomende visitas periódicas
a algum cemitério, também rotulado de campo santo, necrópole, cidade
dos pés juntos ou setepés. As pessoas saem dali mais humildes e
solidárias, embora existam aquelas que se alegram ao verem seus
desafetos estudando a geologia do campo santo - como dizia mestre
Machado. A grande maioria, porém, não costuma freqüentar os
cemitérios, exceto para visitar pessoas queridas ou cumprir rituais.
Alguns deles, pela grandiosidade, se tornaram atrações turísticas.
“Père Lachaise”, em Paris, “Highgate”, em Londres, e “Arlington”, em
Washington, são visitas obrigatórias. Na entrada do primeiro são
vendidos mapas indicando os túmulos das personalidades que lá
repousam. Ele deu margem a uma das grandes páginas das memórias de
Gilberto Amado, o maior memorialista brasileiro. No de Londres se
encontram os restos mortais de Karl Marx, objeto de intensa
curiosidade e constante visitação. O túmulo de Carlos Gardel, em
Buenos Aires, é muito visitado, o que também acontece com o
cemitério da Consolação, em São Paulo, onde repousam Monteiro Lobato
e Mário de Andrade, entre tantos outros. Em certas datas, para lá
acorrem escritores, intelectuais, leitores e admiradores dessas
figuras.
Essas recordações um tanto fúnebres me trouxeram à lembrança o “Sparkenbroke”,
de Charles Morgan, traduzido pelo inesquecível Mário Quintana e
publicado na célebre Coleção Nobel, da Editora Globo. Um dos maiores
e mais tocantes romances que li na juventude e ao qual volto de
tempos em tempos. Nele, um escudo esculpido à porta do túmulo dos
Sparkenbroke inscreve versos que imploram a piedade dos vivos para
com os mortos, em palavras que nunca esqueci:
“Algum mortal, em meio à humana lida,
lamenta acaso quem aqui repousa? (...)
Amorosos e moços vida em fora,
também já fomos como és agora!
Ó tu que te aproximas, tem piedade,
Que aqui se acaba amor e mocidade!
E enquanto arde a tua primavera,
Lembra que o frio do inverno inda te espera...(...)
Ó frios ventos hibernais, correi...”
Como uma lembrança puxa a outra, recordei antiga peça teatral
ambientada num campo santo. Tristes em decorrência do abandono, os
“moradores” deixam suas tumbas e se reúnem em assembléia para darem
curso, em conjunto, à tristeza. Choram copiosamente, as lágrimas
amargas escorrendo pela brancura dos mármores. Até que um deles,
ouvindo barulhos, diz: “Esperem, parece que estão vindo nos
visitar!” Todos silenciam, olham cheios de esperança, engolem os
soluços, mas é rebate falso. “Nada disso – diz outro. – Eles se
dirigem ao palacete do novo príncipe para beijar-lhe a mão!” E
todos, em conjunto, voltam ao choro convulsivo, soluçando com
redobrada força.
Com um amigo que também já estuda a geologia do campo santo, eu
costumava visitar o cemitério protestante de Blumenau. Rico em
esculturas e arte funerária, sempre florido, ficava livre dos ruídos
urbanos e envolto num silêncio apaziguador. Local propício às
orações e devaneios sobre a vida e seus mistérios, lembrando os
entes queridos que já partiram porque enquanto pensarmos
neles, continuarão vivos. Devo reconhecer, porém, que apreciava mais
o pequeno cemitério perdido nos campos de minha terra, esquecido em
meio ao tapete verdejante, onde repousavam seres anônimos a quem
minha visita deveria levar momentos de alegria, ainda que
passageira. Pelo menos eu assim pensava.
(29 de abril/2006)
CooJornal no 474
Enéas Athanázio é escritor
e.atha@terra.com.br
Florianópolis - SC
|
|