01/04/2017
Ano 20 - Número 1.023

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O óbito do dramaturgo em 8 ½ dimensões

Carlos Trigueiro - CooJornal



(7ª Dimensão)


DEFUNTO (Elucubrando...): Enquanto a ambulância do Seguro-Saúde JUNTOS PARA SEMPRE não chega, percebo o que acontece além das paredes. É inevitável e não sei explicar a razão, mas estou vendo e ouvindo o que acontece no apartamento do vizinho paramédico que me socorreu. Estão conversando e discutindo, “Deus saberá”.

COMPANHEIRA (sem desgrudar os olhos da TV): Quem estava gritando?

VIZINHO (reentrando em casa): A mulher do dramaturgo aí ao lado, a dona Isadora, o coitado sofreu um derrame e teve um enfarte violento... Ainda tentei reanimá-lo...

COMPANHEIRA: Que chatice! Homem é tudo igual, nós mudamos há poucas semanas pra aqui e você já sabe até o nome da vizinha! Agora sossega aí que já vai começar a novela.

VIZINHO: Um cara morre a dois passos daqui, o país na beira do Apocalipse, e você só pensa em novela?!

COMPANHEIRA: Ô profeta do asfalto, não esquece que exportamos telenovelas para dezenas de países!

VIZINHO: Pena os nossos representantes no Congresso em Brasília não irem junto!

COMPANHEIRA: Mal-agradecido! Cospe no prato que comeu! E já esqueceu que você era um reles suplente de barbeiro do Senado e se aposentou com uma inacreditável aposentadoria de trinta salários-mínimos!

VIZINHO: Meus diplomas de sociólogo, de economista, de auxiliar de enfermagem e de paramédico abriram caminhos. Fui barbeiro do Senado por vícios da politicagem de Brasília… e o homem é sempre produto do seu meio e do seu tempo.

COMPANHEIRA: Tudo sem esforço! Quero ver você largar a bebida e escapar da decadência!

VIZINHO: Sou decadente como a maioria das classes médias, mas faço a minha parte.

COMPANHEIRA: Parte? Receber o contracheque no fim do mês, escrever ensaios imaginários e esvaziar garrafas!

VIZINHO: Faço sim, critico o abismo galáctico entre as nossas leis penais e a realidade violenta do dia-a-dia.

COMPANHEIRA: Sociólogo de botequim! Vivemos num paraíso, os estrangeiros que vêm aqui ficam loucos com o nosso povo, com a liberdade de todo mundo fazer o que bem entende!

VIZINHO: É… a meia dúzia que consegue sobreviver à violência urbana, suburbana, da periferia, e interiorana! Que consegue sobreviver à artilharia da bandidagem!

COMPANHEIRA: Derrotista!

VIZINHO: Sabia que caminhar ao ar livre, ou pedalar na bicicleta nem mais esse direito temos hoje! Bandidos armados, maiores e menores, fazem arrastão por toda parte!

COMPANHEIRA: Nossa democracia não é perfeita, mas nossos direitos estão todos lá na Nova Constituição!

VIZINHO: Direito não vale nada aqui! Nossa democracia foi feita em forno de microondas, ungida e empacotada pelas elites pra atender o momento das oligarquias dominantes, empreiteiros da vez e seus comparsas de partidos políticos vendidos — as falanges sindicalistas manipuladoras do aparelho administrativo do estado!

COMPANHEIRA: Chega de discurso de jornalista da oposição fajuta! Agora vai entrar o último anúncio comercial, acabou-se o teu tempo pra xaropadas sociológicas.

VIZINHO: O desgosto afundou meu imaginário, deixou de fora uma anteninha sentimentaloide, cercada de miséria e assaltos por todos os lados.

COMPANHEIRA: Miséria? Assaltos? Só se for a miséria e os assaltos mostrados pelos telejornais e que você vê refestelado no sofá, no bem-bom do ar condicionado e com o copo de uísque 12 anos na mão. Nem cachaça você bebe!

VIZINHO: Miséria moral! Até agora reagi rascunhando ensaios e desabafando com você, professorinha de alunos do primeiro grau nos subúrbios satélites de Brasília, promovida a manicure da Câmara dos Deputados, e tudo graças aos meus contatos políticos!

COMPANHEIRA: Cafajeste!

VIZINHO: Vou largar tudo isso e me alistar num balcão de esperança, nesses novos partidos do Bem que estão criando!

COMPANHEIRA: No Brasil já há dezenas e dezenas de partidos políticos e se tiver fila para o alistamento você vai desistir!

VIZINHO: Cansei! Não é possível as coisas piorarem sempre e tudo terminar em Pizza!

COMPANHEIRA: Intelectuais têm mania de denunciar, mas não resolvem nada. Aqui, no Brasil, até hoje, só generais resolveram alguma coisa! Infelizmente ficaram fora de moda, mas... como tem moda que vai e volta…

(VÁCUO – Tipo assim... Intervalo)

DEFUNTO (Elucubrando...): Que transtorno eu ter despencado em plena sala de visitas, isso lá é lugar de cair, desarrumando a decoração da casa? Foi a primeira coisa que minha mulher pensou. Na ordem da casa. A desordem geral no país ninguém quer ver, ou presume que não tem jeito, pois “pau que nasce torto não endireita mais”. E se houve pau que nasceu torto foi o tal do pau-brasil! O país já nasceu dentro do penico das monarquias ibéricas, com aqueles tratados de merda, onde os meridianos demarcadores dos territórios eram soprados pra cá e pra lá com arrotos e peidos da nobreza. Porra! Lá estou falando, de novo, como se estivesse no palco!
Hoje, o Brasil padece sob o manto corrupto do liberalismo sindical! Melhor voltar ao meu problema. E como eu pensava, meu corpo ter caído sobre florões rubros de raro Kashan do século XIX acabou enobrecendo meus estertores. No involuntário movimento derrubei a banqueta onde pousava antigo vaso chinês de bojo arredondado e cor turquesina – na Antiguidade, era o matiz que simbolizava a ressurreição.
Na verdade, o adorno rolou sem nenhum dano sobre meu corpo estendido e estancou junto a minha cabeça. Foi a última coisa que com os olhos vi — ideogramas ladeando crisântemos. Ao despencar, o vaso desvencilhou-se da base redonda trabalhada em maciço pau rosa do sudoeste chinês. Rodopiando, a peça enviesou sob o sofá e subtraiu-se das vistas. Quanto ao vaso, ficou de pé, reluzindo sob facho de luz fugidia versos grafados há séculos.
Reconheço que é terrível essa fragmentação dos fatos, das coisas, do entorno. Essa descontinuidade na sucessão dos atos. Mas acho que deve ser essa a perspectiva dos mortos. Ao menos até aqui parece que é.
Contudo, a vida pós-moderna não ficou exatamente assim? Se ninguém nota é porque todos estão concentrados no seu caleidoscópio interior, no seu celular de última geração, nos novos aplicativos que surgem a todo instante, ou naquilo que atende exclusivamente por “Eu” há milhares de anos.
Quanto a mim, tirante a elucubração sobre o Brasil político, acho que atingi estágio superior e, agora, me integro à consciência cósmica. A tudo compreendo: que não há em cima nem embaixo, dentro ou fora, claro ou escuro, futuro ou passado. Tudo é uno. Mudar é que estabiliza. Princípio e fim se encontram em desguios perdidos. Sei que não estou morto, apenas já fui vivo! O pior de tudo é essa dúvida: morri mesmo ou estou sonhando que morri?

BERTHOLD BRECHT (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida.”.

CONFÚCIO: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Quem de manhã compreendeu os ensinamentos da sabedoria, à noite pode morrer contente.”.

DEFUNTO (Elucubrando...): E que será de Isadora frente a frente com os meus filhos de tantos casamentos na hora do enterro? Será que algumas das minhas “ex-mulheres” também virão ao meu sepultamento? Deixei por escrito que não quero ser cremado, detesto até mesmo fogos de artifício no palco! Além do mais, encontros de ex-mulheres no sepultamento de ex-marido não devem ser indiferentes...

BERTHOLD BRECHT (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “ Um homem tem sempre medo de uma mulher que o ame muito.”.

MOZART (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Para fazer uma obra de arte não basta ter talento, não basta ter força, é preciso também viver um grande amor.”.

DEFUNTO (Elucubrando...): Pensando bem, Isadora é muito jovem ainda, vinte e oito anos e meio, poderá reconstruir a vida com um novo companheiro e, claro, com o que deixei em termos de peças teatrais inéditas a ela dedicadas, e que poderão ser montadas com a ajuda de amigos e atores aparentemente fiéis ao meu teatro. Difícil é saber quem é sincero e honesto. Prestarei atenção aos dizeres dos grandes vultos que perpassam minha sombra meio cá meio lá... É difícil interpretá-los, pois são sábios demais!

LOPE DE VEGA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Deus nos livre de inimizades de amigos!”.

KATHERINE MANSFIELD (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Eu quero ser tudo que sou capaz de me tornar.”.

OVÍDIO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Simula ser aquilo que não é.”.

SALOMÃO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Assim que comerão do fruto do seu caminho, e fartar-se-ão dos seus próprios conselhos”.

DEMÓSTENES (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O próximo dia ensina ao dia que passou.”.

JUAN CARLOS ONETTI: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Sempre digo que as críticas são como a morte, às vezes demoram, mas chegam sempre.”.

MÁRIO DE ANDRADE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.”.

MACHADO DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “A moral é uma, os pecados são diferentes.”.

SARTRE: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Não há necessidade de grelhas, o inferno são os outros.”.

ROUSSEAU (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “A paciência é amarga, mas o seu fruto é doce.”.

LA FONTAINE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O símbolo dos ingratos não é a Serpente. É o Homem.”.

GUIMARÃES ROSA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Felicidade se acha em horinhas de descuido.”.

MACHADO DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Está morto, podemos elogiá-lo à vontade.”.





Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de abril/2017)
CooJornal nº 1.023


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
www.carlostrigueiro.art.br



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