01/11/2016
Ano 20 - Número 1.004

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O óbito do dramaturgo em 8 ½ dimensões

Carlos Trigueiro - CooJornal



(2ª Dimensão)

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Se arredares a tua bunda de cima das minhas botas e esperares que eu termine o meu aggiornamento, digo, atualização, sobre a tua época, iluminarei o entorno para que possas enxergar além da tua imaginação de dramaturgo da periferia, e te mostrarei onde estás e, possivelmente, indicarei o teu caminho de expiação.

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Quem és tu? Com essa fala recheada de promessas deves ser algum Senador reeleito pela terceira vez e líder de bancada no Planalto...

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Sou Dante, ou melhor, eu era, ou eu fui... Dante Alighieri, como queiras.

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Incrível! Logo na minha primeira conversa depois de morto dou de cara com um sujeito que morreu há séculos, mas se tornou imortal pela obra que fez! Aliás, imortal de verdade, sem disputa, propaganda, eleição, diploma, fardão, currículo e medalheiro, ou seria medalhário? Aqui não tenho dicionário nem internet para acessar o Google! Mas, Dante, meu caro, onde é que eu estou? Aliás, onde é que nós estamos?

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): NÓS? Em verdade, tu estás na merda de sempre, aliás, no teu país de merda! Sou Dante Alighieri, estou numa dimensão superior faz séculos! Desci até aqui a pedido de uma anja gostosa...

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Então ainda estou no Brasil? Aliás, na tua época acho que o meu país nem existia, ou, talvez, acho que foi isso, pouco depois da tua morte ficou conhecido como a terra do pau-brasil...

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Nem pensar! Estás na merda mesmo, ou seja: terás o corpo enterrado no teu país e..., bem, a tua alma vai para o Purgatório dessas bandas aí mesmo, terrenas! Aliás, o Purgatório agora é todo feito de plástico – paredes, tetos, assoalhos, instrumentos – tudo agora é importado da China! Soube que até o Inferno está importando fogos de artifício utilizados nas comemorações do Ano Novo Chinês!

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Que naturalidade, fala comigo sem inflar o peito nem insinuar medalhário! Então, depois que enterrarem meu corpo no Brasil a minha alma vai pro Purgatório de merda, digo, Purgatório de plástico made in China?

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Procura ser mais polido! Cazzo! Todo morto é igual aos bilhões de mortos que nos precederam, ou seja, não valemos nada mais do que as despesas com o próprio funeral.

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Me desculpa, eu era dramaturgo profissional, e reações do pessoal de teatro são tão espontâneas quanto corrupção em licitações públicas no Brasil. Sei que em vida cometi todo tipo de pecado: pecado original, venial, mortal, nefando, político, pecado capital... Mas ir parar num Purgatório aqui mesmo, com certeza repleto de propinas oferecidas por elementos representativos dos poderes dominantes no Brasil, e cá pra nós, todo de plástico made in China, é desaforo dos comandos celestiais!

DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Presta bem atenção! O Purgatório é expiação reservada aos que cometeram pecados com alguma chance de remissão. Do jeito que o mundo terreno ficou, com terrorismo praticado por fanáticos suicidas – e até por crianças e mulheres aliciadas – ou financiado por banqueiros e líderes barbudos, com guerrilhas entre famílias e etnias por causa de territórios que se comparados ao Universo não passam de pau de galinheiro em fundos de quintal... Vocês estão ressuscitando as briguinhas dos tempos bíblicos, enquanto milhões morrem de fome, de doenças evitáveis ou por falta de hospitais. Mas se fizeres por merecer, daqui pra frente, ainda poderás ser perdoado pelo Criador de todas as coisas e subires para outros planos e dimensões. Em verdade, por experiência própria, acho que o pior pecado dos dramaturgos é tentar imitar os poderes divinos!

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Imitar os poderes divinos? Nunca pensei nisso!

DANTE (Vulto falando ou...): Bem, eu escrevi um longo poema épico e teológico, talvez o maior já escrito por essas bandas terrenas ocidentais e que tu conhecerás pelo título de “Divina Comédia”. Eu já paguei meus pecados por isso, por ter tentado antecipar o que se passa no Inferno, no Céu, no Purgatório... E tu não fizeste algo parecido – claro que não em qualidade... porque és medíocre – quero dizer em termos de criatividade? Aliás, constatei que foi o que fizeste na vida além de casar absurdamente oito vezes: criar personagens, manipulá-los e direcionar os seus destinos, como se fosses Deus!

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Eu fiz teatro por amor à arte! Criei personagens por amor à arte! Casei oito vezes por amor ao amor... A partir dos vinte e dois anos de idade, troquei de mulher a cada cinco anos... Mas, claro, tudo por força do Amor... Eu e as oito mulheres com as quais casei sempre falamos a verdade entre nós... Amantes honestos não mentem nem por necessidade...

MARCEL PROUST (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Só se ama o que não se possui completamente.

CAMÕES (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Amar é um cuidar que se ganha em se perder.

MACHADO DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Não se ama duas vezes a mesma mulher.

TCHEKHOV (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Eles são honestos: não mentem sem necessidade.

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Dante? Estás aí? Por que as almas do Proust, Machado, Tchekhov e do Camões apareceram aí de repente na nossa conversa?

DANTE (Vulto falando ou...): Cazzo! Escuta só, artista da periferia! Ainda estou aqui, mas logo voltarei às elevadas dimensões. Porém, antes de ir-me, e porque tenho apreço ao que chamas de teatro, alerto com veemência que todo defunto noviço terá a alma penada e ouvirá, aleatoriamente, como ouviste de Tchekhov, Machado, Camões e Proust, outras opiniões de grandes vultos. Pondera-as bem, sem contestar o mínimo que seja, pois tua experiência terrena é irrisória!

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Valeu! De fato, não fui dramaturgo brilhante, midiático e virtual! Mas lutei na vida! Eu era engajado contra disparidades sociais, econômicas, sexuais, e imorais dos meus conterrâneos e contemporâneos!

OSWALD DE ANDRADE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): A vida é uma calamidade a prestações.

DANTE (Falando, ou sabe-se lá...): Convém saberes que a presunção dos dramaturgos perturba a Suprema Onisciência, e os Conselheiros Celestes perdem a paciência com iniciações de almas presunçosas. Lembra-te disso! Mas se agires sempre humildemente, confessando teus pecados de todo tipo e minimizando a tua pretensiosa arte, conseguirás reciclar teus pecados! Vai-te! A tua expiação pode demorar séculos e seres reencarnado em outros personagens, ou até em dramaturgos melhores, embora essa aparente morte súbita que sofreste tenha apagado a tua noção do Tempo! Arrivederci!

DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Por falar em Tempo, que hora é essa?

SHAKESPEARE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): ... hora de ser honesto.

FERNANDO PESSOA (Vulto recitando, ou sabe-se lá...): As horas pela alameda vestes de seda arrastam.

DEFUNTO (Elucubrando...): Ufa! Ainda estou me recuperando do encontro com Dante e já estão aparecendo outros vultos notáveis! Terá sido um sonho, ou estarei sonhando ainda? Não, acho que não. Inexiste ambiência onírica – aqueles véus de bruma se infiltrando no sono pelas frestas das pestanas e serpenteando entre personagens quase reais.

ERICH FROMM (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Quando dormindo, não estamos preocupados em subjugar o mundo exterior a nossos propósitos. Ficamos inermes e, por isso, o sono foi apropriadamente denominado ‘o irmão da morte’.

DEFUNTO (Elucubrando...): Bem, primeiro vou tratar do mais penoso, ou seja, constatar minha própria morte! Depois tratarei da expiação. Deve ser fácil relembrar meus pecados de diversas categorias, pois quase todo mundo peca “por pensamentos, palavras e obras!”. E se, no Brasil, já foi instituída a tal da “‘delação premiada” para políticos e seus sócios corruptos pecadores, quem sabe no Purgatório funcionará algum tipo de premiação semelhante? Então, nesses primeiros momentos pós-morte acho que isso é o mais importante... Depois, pensarei no que Dante disse sobre a minha presunçosa imitação de Deus! E sobre os meus oito casamentos... Aliás, todos só com mulheres... Disso me orgulhei sempre: sou conservador, macho caçador de fêmea, como nos tempos pré-históricos...

SALOMÃO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Sou Salomão, personagem bíblico, e te recito o Evangelho: ”Filho meu, se os pecadores te atraírem com afagos, não consintas”.

VIRGINIA WOOLF (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Tanto faz morrer no sofá da sala ou se atirar em um rio como fiz em Londres... Pureza e venalidade, corrupção e decência, vida e morte: os extremos se afagam o tempo todo...

SANTO TOMÁS DE AQUINO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Há poucos escolhidos que serão salvos.

DEFUNTO (Elucubrando...): É incrível poder ouvir esses grandes vultos! Dante me aconselhou a não rebater seus argumentos. Vou ficar girando em torno do que fui, achando isso, pensando aquilo, se pensar for termo propício. Certo é que tombado estou, inerte, verbo lacrado, cores defuntas, expressões finadas. Meus óculos, astigmatismo e miopia desapareceram. Será que fui vítima de um dos milhares de bandidos menores de idade em inúteis processos de ressocialização no Brasil? Será que os legisladores brasileiros pensam que o nosso menor de idade tem a essência ética, cultural e educacional do jovem nascido em países como a Dinamarca, Suécia, Noruega, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Suíça, Japão, Nova Zelândia e em outros lugares desenvolvidos que investiram pesado em educação e infraestrutura geral para se viver dignamente?

FEDRO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Entre diversos males, escolhe o menor.

MENOR BANDIDO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Matei meus pais, avós, irmãos, primos e tios pra acelerar o processo da herança a que faria jus um dia, porque ficar esperando processo tipo inventário na Justiça no Brasil, ou qualquer processo judicial, leva uma eternidade! Dei azar porque outro menor, mais bandido do que eu, não gostou da minha história e perfurou o meu coração com uma chave tipo de fenda durante aula de convivência social no centro de ressocialização de menores. Eu agora estou aqui, mas ele ainda está se ressocializando, matando, estuprando e assaltando sob a cobertura das leis brasileiras!

RUY BARBOSA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): A Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.

HERMAN HESSE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Não existe nada tão mau, selvagem e cruel, na natureza, quanto os homens normais.




Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de novembro/2016)
CooJornal nº 1.004


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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