15/10/2016
Ano 20 - Número 1.002

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O óbito do dramaturgo em 8 ½ dimensões

Carlos Trigueiro - CooJornal



(1ª Dimensão)

VIZINHO (Digitando o celular face a face com a interlocutora): Lamento minha senhora..., é triste, mas tenho de ser desagradável… Acho que o Celso Rodrigo, seu marido, aliás, único dramaturgo que conheci pessoalmente, sofreu um derrame e, depois, uma parada cardíaca... Ainda tentei forte massagem no seu tórax, mas… Infelizmente...

DEFUNTO (Pensando, ou sabe-se lá...): Ouvi exatamente isso da boca do novo vizinho. Sei que ele é paramédico. Mas, se eu já morri, é absurdo continuar ouvindo os vivos porque defuntos, até mesmo os políticos de Brasília, que em vida podem tudo, não conseguem ter os sentidos funcionando depois da morte. E também vejo tudo, tudinho, mas não com os olhos, talvez eu esteja numa última fase de sobrevida, ou enxergando a vida do lado de lá e de cá, não sei explicar. Isadora, minha oitava mulher, parece atônita...

FERNANDO PESSOA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais...”.

ISADORA (Digitando o celular frente a frente com o vizinho): Ai, ai, meu vizinho! Não! Não posso acreditar que o meu querido Celso Rodrigo, tão novo, sessenta e dois anos, esteja morto! Tínhamos tantos planos! Meu Deus! Não sei nem por onde começar... Nunca pensei nisso... Nunca supus uma tragédia tipo assim... E fui atriz de teatro desde menina... Nós nos apaixonamos na última turnê, foi um amor fulminante, apesar de ser o oitavo casamento dele!

FREUD (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada.”.

JORGE LUIS BORGES (Vulto falando, ou sabe-se lá...):”O casamento é um destino pobre para uma mulher.”.

TCHEKHOV (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Um casamento feliz pode existir apenas entre um marido surdo e uma mulher cega.”.

LOPE DE VEGA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O apaixonado nunca é feliz, a felicidade é o preço da audácia.”.

VIZINHO (Digitando o celular frente a frente com Isadora...): Minha senhora... Acho melhor chamar o médico da família e alguns parentes também... A senhora vai precisar de atestado de óbito, testemunhas para documentos e de ajuda para o enterro... Se o seu marido tinha um bom Plano de Saúde tudo será mais fácil. Tem Plano de Saúde com direito a helicóptero que já carrega o médico legista para atestar o óbito, os representantes do serviço funerário e do cartório móvel onde será registrado o falecimento... Alguns trazem ainda músicos caso o cliente patrocinador do enterro queira amenizar a tristeza do ambiente... Claro que planos dessa categoria também já trazem representantes de lojas de flores para as coroas de praxe... Nos Estados Unidos fazem até serviço de coquetel durante o velório... Desculpe falar assim numa hora dessas! Mas é a realidade da vida no encontro com a morte!

NIETZSCHE: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Sem a música, a vida seria um erro.”.

ISADORA (Ainda digitando frente a frente com o vizinho): Meu Deus! Não posso acreditar! Celso Rodrigo estava tão calmo lendo o jornal, no sofá em frente à televisão, com o celular na mão e ao lado do Pimpolho, o nosso cachorrinho… Será que teve um mal súbito ao ler alguma mensagem assustadora sobre a nova peça que estava montando? Ainda não acredito que Rodrigo esteja morto!

VIZINHO (Digitando ainda frente a frente com Isadora...): Sinto muito senhora, não quero me intrometer, mas jornal hoje em dia é quase inofensivo. E, bem, televisão é um tipo de droga lenta. Agora, celulares tem efeito instantâneo: tipo droga na veia! Desculpe, tenho de ir embora... Preciso atender ao chamado de um dos meus envenenados, digo, de um dos meus seguidores!

ISADORA (Digitando ainda frente a frente com o vizinho...): Obrigada, vizinho! Muito obrigada pelo socorro... Num momento desesperador como este, ainda bem que o senhor ouviu os meus gritos no módulo viva-voz do seu celular e atendeu imediatamente...

VIZINHO (Digitando suas despedidas frente a frente com Isadora...): Bem, eu estava chegando da rua, aliás, ainda estava abrindo a porta... Se precisar – eu sou Salvador de Areal e Barros – tome aqui o meu cartão profissional, tem também outros dados eletrônicos e virtuais. Foi uma boa ideia do Síndico que os condôminos tenham os números dos celulares dos vizinhos mais próximos... Parece que ele estava adivinhando... Desculpe, vou atender a um cliente que me chama no meu segundo celular... Boa noite! Me avise por favor sobre o enterro!

ALBERT EINSTEIN (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excede a nossa humanidade.”.

DEFUNTO (Elucubrando, ou sabe-se lá...): Tive a impressão de que também ouvi outras vozes... Mas, agora, parece que estranha sensação me invade. Sinto como se caísse ou viajasse velozmente, o entorno girando sem parar, e eu rodando no sentido inverso, sempre sem parar, sempre…, agora sim, meio errante e destrambelhado, acho que estou parando, parando. Sim, aos poucos, tudo vai se aquietando. Se a sensação estranha era dupla vertigem, acabou-se. Paira em torno inexplicável escuridão, porém são matizes escuros que nunca vi! Transpus o túnel do Além? Cheguei à morada dos mortos? E as vozes estranhas que ouvi? Pareciam vozes do Além, de imortais... Quem saberá?

EDGAR ALLAN POE: (Vulto declamando versos, ou sabe-se lá...):
“A sondar a escuridão, lá fiquei, meditando em vão
Sonhando sonhos que nunca ser algum sonhou jamais.”

DEFUNTO (Elucubrando, ou sabe-se lá): Agora percebi. Esses versos são do Poe e eles estão no fenomenal poema “O Corvo”. Deve ser outra voz de imortal que passa por aqui nessa escuridão! Acho que vou tentar de algum modo também me estabelecer no meio dessas trevas... Tateio alguma coisa aqui embaixo, acho que é uma saliência de pelica ou de couro, vou tratar de me acomodar nela. Porém, se estou morto e rumo à eternidade, onde está a multidão de mortos que me precedeu? Onde se esconde a humanidade inteira que já transitou? Só percebi até agora as vozes desses vultos solitários, meio perdidos, embora reconhecidos como imortais pelo que deixaram na arte...

DAVID BOWIE (Vulto cantando, ou sabe-se lá...): “Eu estou no vento”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (VULTO FALANDO OU SABE-SE LÁ...): “O pássaro é livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo.”.

DEFUNTO (Elucubrando, ou sabe-se lá...): Irado! Estão aparecendo mais e mais vultos extraordinários. Se Deus é tão perfeito quanto pregam, deveria isso sim, haver um guia, anjo, ou espírito iluminado esperando por mim no portal entre a vida e a morte... No mínimo aparecer alguém credenciado para me explicar o que tenho de fazer nesse vácuo, vento ou... Talvez tomar um banho com ervas... Ou acender incenso, ou meia dúzia de velas... Talvez trocar de roupa, botar gravata, paletó! Alguém que me mostrasse o caminho a seguir nessa escuridão. Numa hora dessas é que se vê o valor de um motorista tipo Uber com GPS e aplicativos virtuais no painel do carro!

GOETHE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Mais luz!”.

MANOEL DE BARROS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Só o obscuro nos cintila.”.

DEFUNTO (Elucubrando, ou sabe-se lá...): Sim, mais luz é fundamental. Pior é que fiquei sem o celular... Meu aparelho tinha lanterna... Mas como não há morcegos, víboras e lagartos por perto, e nem sombra de Mefistófeles, ao menos acho que isto aqui não é o Inferno! Ou será que é? Afinal, onde é que eu estou?

NELSON RODRIGUES (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Só os profetas enxergam o óbvio.”.

DEFUNTO (Pensando, ou sabe-se lá...): Nossa! Quantos imortais de grande estatura! Em vida, ouvi muita gente dizer que o Inferno é aqui mesmo na terra... Vai ver então que é... Nosso cachorrinho de estimação e de toda confiança, o Pimpolho, parece querer lamber a minha mão. Será que ele está querendo me avisar sobre alguma coisa prestes a acontecer e que só animais tipo assim enxergam, sentem ou até preveem? Mas avisar-me em silêncio, sem nenhuma espécie de latido? Dizem que certos animais possuem sentidos que nós, humanos, ainda não temos... Mas é difícil confiar nessas coisas meio esotéricas...

SHAKESPEARE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O silêncio é o mais perfeito arauto da felicidade!”. .

BRAHMS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “A confiança perdida é difícil de recuperar. Ela não cresce como as unhas.”.




Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(15 de outubro/2016)
CooJornal nº 1.002


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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