15/08/2016
Ano 20 - Número 996

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



VERMES PÓS-MODERNOS ou TIPO ASSIM
ADVERTÊNCIA: Texto forte! Leitores impressionáveis devem saltá-lo.

Carlos Trigueiro - CooJornal


Primeiro de tudo: asseverar que este texto não é ficcional, somente recorrendo à sábia prudência..., tipo José Saramago - “Deus saberá”.

Num cemitério de Brasília, ocorreu o seguinte falatório entre vermes antes e depois do sepultamento de um corpo. A fim de que o desprendido leitor não conteste o inusitado, será imprescindível ler com atenção e sem preconceitos religiosos, políticos, étnicos, ou de outra índole, o que segue abaixo.

Em verdade, sucedeu que um senhor de classe social elevada deixou em seu testamento - lavrado em Cartório oficial - instrução aos respectivos familiares e herdeiros para que o seu corpo não fosse cremado, mas enterrado e vestido com terno de grife, cabendo no bolso interno do paletó, do lado do coração, o seu i-phone com chip e baterias em perfeito estado, bem como todos os aplicativos e agenda de contatos que costumava utilizar em vida.

Curiosamente - se é que nestes tempos pós-modernos existe ainda alguma coisa que desperte curiosidade - no mesmo documento, registrou que os familiares deveriam entregar o seu corpo falecido já totalmente vestido à funerária encarregada do sepultamento, e que, obrigatoriamente, suas últimas cuecas e camisa social a serem usadas fossem de puro algodão, ou seja, nada de fibras sintéticas.

Também instruiu, por escrito, que colocassem nos bolsos de suas calças rumo à sepultura cinco listas lacradas, em antigo papel almaço, contendo nomes de parceiros em negócios. Tais listas estariam guardadas no cofre de seu escritório doméstico, na Asa Sul da capital brasileira.

Particularmente, fora do Cartório, segredou aos familiares que a combinação e chave para abertura do cofre estariam guardadas com a sua cozinheira, Priscila, de total confiança e que lhe fazia vontades de qualquer ordem havia anos, desde que enviuvara pela segunda vez.

Para configurar o tempo em que ocorreu o episódio vindouro, convém registrar que o influente senhor faleceu trasanteontem - como diria Arthur Azevedo se ainda continuasse andanças por estas paragens.

Embora sem a convicção que era de se esperar de lutuosos, e, por isso, meio aturdidos, os familiares cumpriram o desejo do figurão que, além de bilionário e ligado à cúpula dos partidos políticos e aparelhos sindicais dominantes, tinha manias pra lá de extravagantes.

A mais provocadora de suas manias, digamos, era a paixão por cibernética, telemática e memética, sentimento esse que o levou a investir pesado em empresas nacionais e estrangeiras especializadas em criptografia eletrônica, decifração de bits, algoritmos, ruídos estelares do Universo - de que já falava Einstein - e assemelhados.
Três horas após a cerimônia fúnebre ocorreu, no interior do túmulo, o falatório discriminado nos parágrafos seguintes à linha pontilhada.

Assim, todo o teor descriptografado (“decifrado” foi a terminologia usada por especialistas contratados pela família) da simbologia dos vermes necrófagos, por aplicativo baixado no i-phone, foi traduzido e retransmitido palavra por palavra num sistema de viva voz (também decodificado) para amigos do falecido constantes da agenda arquivada no citado aparelho e, em suma, aficionados do enigmático assunto.

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“Oba! Faz tempo não temos carne nova nesta porcaria de tumba. Tomara seja cadáver sem essas doenças da moda, porque no túmulo aí ao lado, os vermes e bactérias nossos aparentados reclamaram que o defunto sepultado anteontem tivera zika, dengue e chicungunya, tudo junto e misturado e, por isso, o gosto das carnes era horrível! Mal deu para fazerem o trabalho de decomposição inicial que a Mãe-Natureza lhes encarregou desde o início dos tempos.”.

“Vai ver que não era o gosto autêntico da carne que sofrera ataques de zika, dengue e chicungunya, mano... Talvez fossem rescaldos do paladar forte de antibióticos que os médicos aplicaram no doente tentando salvá-lo para retardar a nossa incompreendida missão saprófaga que recicla a cadeia alimentar deste mundo!”

“Mano, não é nada disso! O cadáver do cara enterrado aí ao lado era de um ajudante-de-pedreiro, e nos hospitais públicos do Brasil não há nem sombra de remédio pra essa turma aí da classe baixa...”.

”Bem, mano, eu não sei ao certo, porque me dedico mesmo ao árduo trabalho de decompor imediatamente os cadáveres que enterram aqui. Eu e minha turma enfileirada começamos pelos órgãos que se liquefazem mais rápido, tipo assim: olhos, cérebro, pulmões, pâncreas, intestinos, etc. Aliás, já vamos começar a deglutir o figurão que baixaram faz pouco. Só pelas roupas e corpanzil a gente vê logo que era gente abastada, provavelmente um político, empreiteiro, lobista. doleiro ou gente ligada aos partidos da situação.”.

“Maneiro! Esse manjar que baixaram hoje é de cardápio premiado! O corpo veste até roupas íntimas de algodão, e que são ótimas para degustarmos junto com os molhos naturais das vísceras maiores, tipo fígado.”.

“Mano! Reparou que o cara tem no bolso do paletó aquele aparelho que transformou a vida dos bobalhões humanos?”.

“Vi sim, esse material não dá pra degustarmos logo. Sua decomposição levará centenas de anos.”.

“De que é feito essa porcaria, mano?”

“É feito de material duro e resistente aos nossos esforços sugadores, e tem ainda fiação metalizada, produtos químicos e os tais algoritmos memorizados. Além do mais, transmitem virtualmente para aparelhos similares lá de cima tudo o que se passa aqui embaixo. Enfim, esse aparelhinho aparentemente inofensivo maltrata nosso apetite invulgar, nosso paladar refinado e nosso metabolismo elaborado há milhões de anos pela Mãe-Natureza!”.

“Você não vai acreditar! Olha só o que os nossos primos mais famintos já encontraram nos bolsos da calça dele: listas lacradas com nomes de pessoas, datas e cifrões ao lado - tudo anotado em papel almaço, essa versão moderna do papiro egípcio e que os nossos ancestrais comiam quando acabavam os manjares dos órgãos decompostos de nobres e parentes dos faraós!”

“Irado! Demais! Essas listas registram as propinas que o figurão utilizava com políticos, empreiteiros, governantes, banqueiros, lobistas, enfim, homens de negócios, porque pra nós, saprófagos, aqui embaixo todos os corpos humanos, salvo os drogados e aqueles muito medicados, são todos iguais, depois da milionésima oitava mordida.”.

“Tudo bem! Mas ainda não entendi como um figurão desses que deve ter tido, em vida, helicópteros, escritórios, secretárias, amantes, computadores de última geração etc., anotou esses dados das propinas - quem, quanto, quando e pra quê - em folhas de papel almaço...”.

“Você é um verme ainda jovem e ainda não tem a malícia multimilenária dos detritívoros como eu e que foi transferida de geração em geração. Explico: se o figurão registrasse em computadores e assemelhados suas propinas ganhas ou distribuídas, ele ficaria vulnerável às investigações das autoridades, à fiscalização tributária, aos saques eletrônicos de hackers e afins. Por isso, ele registrou suas propinas ativas e passivas em papel almaço!”.

“Gênio da saprofagia! Se o papel almaço é feito de matéria orgânica tipo celulose, o figurão sabia que, terminado o pasto principal que logo se liquefaz do cadáver, comeríamos o papel com os registros das propinas e assim as provas desapareceriam, virariam o que eles lá em cima chamam de merda.”

“Termina o raciocínio, mano!”

“Foi por isso que ele optou por não ser cremado! E deve ter deixado isso por escrito em testamento em tipo assim... Cartório. E pra finalizar - que já estou sentindo o forte cheiro dos manjares líquidos que escorrem do cérebro dele pelo nariz... O figurão se preveniu, pois, com certeza, a empresa funerária contratada para a cerimônia crematória revisaria todos os bolsos dele antes de ligar o forno e, lógico, acharia as listas das propinas. Então, de imediato, também cobraria propina da família, não é mesmo? Por isso aprendemos desde sempre que a humanidade só é boa mesmo no túmulo, quando suas carnes saciam nosso apetite saprófago e nós, com toda paciência e humildade, reciclamos a cadeia alimentar deste porco imundo, digo, porco mundo”.



Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(15 de agosto/2016)
CooJornal nº 996


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
www.carlostrigueiro.art.br



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