01/08/2016
Ano 20 - Número 994

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



Socialização pelo método dos oitavos
Fábula pós-moderna

Carlos Trigueiro - CooJornal

Numa cidadezinha longínqua, quase imaginária, mas absolutamente real e experimental, segundo o partido político socializante ganhador das últimas eleições em país não muito longe daqui, o sistema de vida das pessoas passou a funcionar sob os parâmetros obrigatórios dos chamados cinco oitavos. O lugar se chamava “Oitavolândia”.

Na alimentação, em termos gerais, os pratos destinados às refeições das pessoas eram cortados milimetricamente com menos 3/8 da circunferência dos pratos normais. Além disso, os copos, as garrafas, os garfos, as colheres, as facas, tudo tinha menos 3/8 de comprimento, largura, circunferência, espessura, peso, embocadura.

No vestuário, as roupas, os ternos, as gravatas, os vestidos, as golas, os cintos, as camisas, as calças, as bermudas, as calcinhas, os sutiãs, as meias, os chapéus, os bonés, os calções, os biquínis, os maiôs, sapatos, sandálias, tamancos, tudo media ou pesava exatamente menos 3/8 do que seria o normal. Claro que havia desconforto em muitos casos, mas sendo a lei válida para todos, no fim das contas o conjunto da comunidade assim socializada saía ganhando com a perda padronizada de menos 3/8 para tudo.

No setor habitacional, as casas, os telhados, os quintais, os muros, as portas, os quartos, as salas, dependências de serviço, bem como os apartamentos em edifícios passaram a obedecer à regra dos 3/8 a menos, desde os espaços-comuns aos condôminos, os chamados playgrounds, mas também os móveis e aparelhos eletrodomésticos tais como geladeira, fogão, filtros, televisão, fornos, adegas, liquidificadores, enceradeiras, aspiradores de pó, e tudo o mais.

Na alimentação, as carnes de qualquer origem (terra, mar ou ar) bem como os enlatados e mesmo o leite, os pães, os pacotes de massas e biscoitos, os refrigerantes e quaisquer bebidas (alcoólicas ou não) passaram a ser utilizados e consumidos com menos três oitavos do que a quantidade e peso normalmente utilizados.

Na educação, tanto escolas de primeiro e segundo grau quanto universidades –– todas de natureza pública –– fizeram o mesmo: reduziram em três oitavos o tempo dos respectivos cursos, mas sem perda de conteúdo para os alunos, embora os professores de todos os níveis cedessem 3/8 dos salários que percebiam anteriormente em prol do sistema socializante.

O sistema era inflexível: se todas as pessoas bem sucedidas cedessem 3/8 de suas posses para as autoridades de “Oitavolândia” redistribuir aos que não alcançavam a fração ideal dos oitavos completos não haveria nenhuma pessoa pobre, nenhum miserável morador de rua, nenhum indivíduo necessitado de coisa alguma material porque já teria o seu quinhão suficiente de oitavos para viver e que era proveniente da fabulosa divisão oitavada.

Claro que os 3/8 valiam para toda coisa palpável. E assim Oitavolândia vinha sendo experiência bem sucedida nos sistemas tributário, fiscal, salarial, nos chamados entretenimentos e lazeres, bem como no programa de ensino porque as escolas adotaram aplicar somente 5/8 das aulas programadas no passado. Tal projeto redundava em menos carga horária para professores e alunos, mas, igualmente, exigia menos instalações e material estudantil, de modo que todos os habitantes em idade escolar eram contemplados.

Obviamente, os consumos de energia, água, força motriz também foram diminuídos de 3/8 em qualquer atividade. Os ventiladores tiveram reduzido o movimento das suas pás ou hélices, os poucos automóveis e ônibus passaram a se movimentar com menos 3/8 da sua força locomotora original. Consequentemente os acidentes também diminuíram em igual proporção.

Todas as moradias passaram a ter estruturas, telhados, jardins, portas, paredes, mobílias, mesas, cadeiras, absolutamente tudo funcionando com menos 3/8 do que as medidas originais adotadas alhures.

A prefeitura passou a ter menos 3/8 de estrutura administrativa, de material, de pessoal e, claro, salarial. Até a polícia passou a utilizar menos 3/8 de munição em suas armas, porque as necessidades de atuação também foram reduzidas na mesma proporção. Obviamente, assaltos, furtos, roubos também diminuíram porque qualquer pessoa era imediatamente reconhecida se demonstrasse estar fora do padrão de posse de bens determinado pelo projeto em vigor, ou seja, de menos três oitavos para tudo.

Na parte produtiva da sociedade, os horários das fábricas e dos serviços foram reduzidos de oito para cinco horas. Aquilo implicou mudança na quantidade de sono para toda a população. Ninguém dormia demais nem de menos, porque o despertar passou a obedecer rigorosamente o esquema oficial dos oitavos, ou seja, todo mundo dormia 5/8 das oito horas recomendadas antigamente pela Medicina. Os 3/8 de horas restantes de cada habitante eram dedicados à ideia de exportar o projeto para lugares vizinhos.

Segundo pesquisadores, Oitavolândia existiria até hoje caso tudo ali não fosse tratado exclusivamente pelo aspecto materialista das coisas. Assim, consta que foi o coração das pessoas que dizimou o fenomenal projeto igualitário –– e muito à frente do sonho bolchevista extrapolado. De fato, ninguém conseguiu amar os seus entes queridos com menos três oitavos do que sentiam, ou ter somente cinco oitavos de saudade dos que partiam.

Oitavolândia desapareceu para sempre numa noite de lua cheia! Mal o astro atingiu 8/8 do seu tamanho no céu, coincidiu que, sob as nuvens e sombras do romantismo, todos os casais apaixonados se beijaram ao mesmo tempo, porém sem regras de oitavos pra cá ou pra lá: beijos desregrados, voluptuosos, indomáveis, no ritmo frenético dos seus corações a palpitar.

Oito minutos depois, aconteceu algo pra lá de extraordinário: gigantesca explosão provocada pelo amor desenfreado em cadeia transformou Oitavolândia num meteoro em forma de coração que está a circular, desde então, por cinco oitavos da Via Láctea.



Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de agosto/2016)
CooJornal nº 994


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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