15/05/2016
Ano 19 - Número 984

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



VIÉS DE MEMÓRIA DITATORIAL

Carlos Trigueiro - CooJornal

Houve um tempo, na década de 1970, em que morei no bairro do Leme, extremo copacabanense mais sossegado, meio bucólico se comparado ao frenesi diuturno da borbulhante Copacabana. No bairro, moravam artistas de TV (lembro-me de juradas e jurados que apareciam no Programa do Chacrinha), pessoal de teatro, cantores, músicos, banqueiros, bancários, militares, jornalistas, funcionários públicos graduados, alguns intelectuais (um amigo editor até entrevistou a Clarice Lispector quando moradora da Rua Gustavo Sampaio) e, claro, a galera do dia a dia.

Praticamente, naquele minibairro dentro do cosmopolitismo de Copacabana, todo mundo se encontrava em bancas de jornal, padaria, sapateiros, quitandas, botecos, choperias, pizzarias, pequenos restaurantes e mercadinhos esmirrados. Os católicos se viam nas missas ou novenas da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, à rua General Ribeiro da Costa. Naquele tempo, já era pra lá de difícil achar uma vaga para estacionar, pois as construções do bairro, em maioria, eram bem antigas e não tinham garagem. Muitas vezes deixei o meu Fusca nos beirais da Avenida Atlântica.

De vez em quando encontrava, na praia, um vizinho do prédio onde eu morava – “Sinésio” de tal, senhor de meia-idade como se dizia naquele tempo, sempre de barba feita, cabelos agrisalhando, muito educado e de olhos azuis afiados em tudo ao redor – era assim que eu o definia. Ele fazia questão de cumprimentar, no mínimo com meneio de cabeça, piscar de olho, ou discreto aceno de mão, a todos que encontrava rumo ao banho de mar.

O pessoal frequentador da praia cochichava que ele seria informante do SNI, e que “Sinésio” deveria ser um codinome, pois nele cabiam discretamente as letras “S, N e I”. Eu achava aquilo mirabolante. Aliás, na época (e mais adiante), colaborei esporadicamente com artigos chegados à sociologia e economia política na página de Opinião do Jornal do Brasil. Mas nunca fui importunado por agentes da ditadura. Os amigos diziam que eu assinava os artigos protegido por meu sobrenome “Trigueiro” – pois, naquele tempo, era ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado pelo Marechal Castelo Branco, ninguém menos do que o jurista paraibano Osvaldo Trigueiro.

Às vezes, “Sinésio”, ao me ver, puxava assunto já no elevador do prédio sobre a situação geral do Brasil, ou então, à beira-mar, sob o sol escaldante na areia da praia. Ele sabia que eu estudara, na década de 1960, na EBAP da Fundação Getúlio Vargas, à época em convênio com o Plano Kennedy e a ONU numa cooperação para o desenvolvimento estratégico do Brasil com suporte de profissionais universitários focados em Administração Pública.

Na FGV, muitos professores eram americanos ou brasileiros que haviam estudado em universidades norte-americanas. Desse modo, nos bancos universitários da FGV/EBAP, tive a extraordinária oportunidade de assistir aulas e palestras de intelectuais notáveis, tipo... Alberto Guerreiro Ramos, Mário Henrique Simonsen, João Pinheiro Neto, Kleber Tatinge Nascimento, Diogo Lordello de Mello, Artur Cesar Ferreira Reis, Márcio Moreira Alves, Cândido Mendes, Riva Bauzer, Fela Moscovici, e tantos outros.

“Sinésio” sabia que eu trabalhava no Banco do Brasil – o que não era segredo porque vários colegas do Banco moravam por ali e, obviamente, ao nos encontrarmos acabávamos falando do BB e dos nossos serviços. Aliás, acho que, por vaidade inerente aos jovens, eu mesmo lhe contara que fizera uma pós-graduação em Disciplinas Bancárias na Universidade de Roma, por interesse do Banco, e na condição de bolsista do governo italiano.

Apesar de simpático, o pessoal do bairro não arredava pé de desconfiar que “Sinésio” era ligado ao governo militar, ou ao SNI, ou ao DOI-CODI ou a outro órgão ditatorial. Na verdade, ele nunca deu mancada, mas não escondia seu entusiasmo com os megaprojetos militares da época: Ponte Rio-Niterói, Estrada Transamazônica, gigantescas Usinas Hidroelétricas como a binacional Itaipu, a fábrica de aviões EMBRAER, os túneis encurtando a autoestrada Lagoa/Barra no Rio de Janeiro, dentre outros.

Fim de semana vai, fim de semana vem, tal como hoje, era costume tomar um copo de mate gelado vendido por vendedores ambulantes na orla. E “Sinésio”, o senhor educado e simpático de olhos azuis e cabelos grisalhos, supostamente informante do SNI, não dispensava o copinho de mate nos dias de praia.

Certo domingo ensolarado, na altura da “Pizzeria Fiorentina”, “Sinésio” veio em direção a mim com o seu copo de mate na mão e um canudinho entre dedos. Sem a cerimônia habitual, mal me cumprimentou e emendou uma fala entusiástica sobre os novos megaprojetos em curso pelo Governo Militar (nem sempre utilizo o vocábulo “ditadura” em termos textuais porque me soa meio obsceno se falado com veemência pausada tipo assim: “Dita-dura”).

Naquele domingo, achei que ele queria me agradar não sei por qual motivo ou, talvez, pelo que iria dizer em seguida, mais ou menos assim: “Você, meu caro, que estudou na Fundação Getúlio Vargas, com aqueles professores notáveis e cerebrais (sic) e, além disso, que fez pós-graduação na Itália, um país que se reconstruiu rapidamente após a 2ª Guerra, não acha que, com a seriedade dos militares que atualmente nos governam, dentro de 50 anos o Brasil será um país tão desenvolvido quanto aqueles que encabeçam a atual classificação da ONU?”.

Enquanto eu pensava na resposta, ele deu uma longa sugada com o canudinho no copo de mate, e ficou me aguardando olho no olho. Segundos depois eu respondi-lhe numa boa: “Olha só, 50 anos não resolvem nada quanto ao gigantismo e necessidades básicas do Brasil, e mesmo se houver muito investimento em educação e em projetos de infraestrutura neste país continental, somente, talvez, daqui a uns 500 anos...”.

Minha resposta quase gerou tragédia, pois “Sinésio” ficou tão chocado com o meu frio vaticínio que se engasgou feio com o mate, ficou muito vermelho, depois arroxeado, e até perdeu a respiração, a ponto de eu e mais dois amigos que rondavam ali perto o socorrermos batendo em suas costas repetidamente, e com força, para desafogá-lo... Enfim, conseguimos que ele se recobrasse do engasgo e respirasse... Claro que o assunto dos 50 anos morreu ali.

Semanas depois, por questões familiares, mudei para a Rua Barata Ribeiro em Copacabana, passei a frequentar a praia na altura do antigo e charmoso Cinema Rian, entre as Ruas Barão de Ipanema e Constante Ramos. Nunca mais encontrei, ou mesmo vi de longe, o suposto informante do S.N.I., “Sinésio” de tal.

Hoje, em 2016, ao lembrar-me do episódio “Sinésio” fiz as contas dos 50 anos previstos por ele em 1974: então, faltariam somente oito anos para o Brasil despontar entre os países mais desenvolvidos do mundo segundo a classificação oficial da ONU.

Infelizmente, meu vaticínio, na época, foi coerente com a realidade histórica brasileira e também com o vislumbre da degradação atual do País em 2016, em quaisquer níveis (moral, ético, político, econômico, educacional, de saúde, saneamento básico, transportes, rodovias, ferrovias, aeroportos, segurança pública, justiça emperrada, penalidades vãs etc.), pois somente no ano 2474 encabeçaríamos a classificação da ONU entre os países mais desenvolvidos. Ou seja, se tudo melhorar, ainda faltam 458.



Extraído do livro a ser lançado: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(15 de maio/2016)
CooJornal nº 984


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
www.carlostrigueiro.art.br



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