15/10/2014
Ano 18 - Número 911

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O preferido do rei (2)

Carlos Trigueiro - CooJornal

— Pronto minha rainha! Juramento é juramento, eis-me, em guarda, com as minhas armas naturais.

— Ordeno ao maior herói do reino que suba ao leito, e por merecimento e glória, trave com sua rainha uma contenda amorosa e real!

E foi assim que, lança em riste, sob o lusco-fusco do pôr do sol, numa atmosfera real de um lado e irreal de outro, Valderico travou com a rainha confronto amoroso privativo dos reis.

Noite alta e a lua entre sombras, após o calor da luta, dos infindáveis movimentos e golpes de parte a parte, sem vencedor nem vencido, desejos saciados, torpor inevitável anunciou a trégua final. Um silêncio parecia esmagar a ambos, lado a lado. A atmosfera de sonho começou a dissipar-se. E como na vida tanto os gozos fruídos quanto os sonhos a desfrutar têm um preço, um custo, um ônus, ou que nome se queira dar, instalou-se nos amantes o pêndulo da reflexão que logo se transformou em remorso, depois em culpa, finalmente em pecado. A rainha espatifou o silêncio contra o teto.

— Valderico, cometemos tremendo pecado!

— Verdade minha rainha, traímos nosso rei, sob a lei dos homens não teremos perdão, mas eu jurei cumprir tuas ordens… — Achou melhor retornar ao antigo e respeitoso tratamento — aliás, cumpri ordens de Vossa Majestade…

— Jurastes — isso é verdade, mas eu vos provoquei… e nós dois fraquejamos. Porém, ainda podemos pedir perdão a Deus, o Senhor de todas as coisas… só Ele poderá perdoar-nos e aliviar a nossa consciência… talvez uma grande penitência, uma clamorosa contrição…, talvez um autoflagelamento…

— Que pensais Majestade?

— Tão logo amanheça, irei à abadia. Abrirei o coração ao meu abade confessor, e ele me dirá qual penitência terei de cumprir para recuperar minha pureza…

— E eu, que farei? Há anos não me confesso, e jurei que tudo o que acontecesse aqui não o revelaria a ninguém… Ficarei com este remorso o resto dos meus dias?

— Fareis o mesmo, ireis ao abade logo depois de mim. Pedireis perdão a Deus que está acima de qualquer juramento. Obviamente, quando confessardes vossos pecados ao meu padre confessor, ele já saberá o que cometemos — até será melhor — e assim somente uma voz pedirá a Deus por nós…

Valderico deixou a câmara real incógnito, pensamentos sombrios e passadas estreitas. Passadas menos silenciosas do que quanto queria, pois a culpa agrega peso invisível ao espírito. Então, o que é imponderável parece adquirir massa, matéria, peso. E surge uma espécie de incômodo corpo dentro do próprio corpo. Em seu alojamento na torre não conseguiu dormir, assaltado pelo remorso.

O sol nasceu. A luz do dia ajuda a clarear também as sombras do espírito. Valderico observou da janela da torre dois servos carregando a liteira da rainha em direção à capela da abadia. Homem de ação, ele pensou rápido, desceu da torre e dirigiu-se à capela. Ajoelhou-se atrás de uma coluna e ficou à espera. Viu quando a rainha terminou o ato da confissão e retirou-se para cuidar de sua penitência. Valderico apareceu como um raio diante do abade confessor e pediu-lhe para, também, tomar sua confissão.

— Abre o coração filho!–Disse o abade por trás da treliça de madeira.

— Tenho muitos pecados!

— Abre o coração, filho, todos somos pecadores, confessarás teus pecados a Deus, e se deles te arrependeres, o Senhor de tudo te perdoará.

— Trucidei quatrocentos e oitenta e nove sarracenos!

— Eram infiéis filho, basta fazeres o pelo-sinal e estarás perdoado.

— Afoguei cento e vinte e cinco cristãos-novos!

— Tardaram a converter-se, reza uma ave-maria e estarás perdoado.

— Tirei a vida de oitenta e dois cristãos, homens de armas!

— Jejuarás por dois dias consecutivos.

— Deitei com metade das mulheres da corte!

— Quantas?

— Acho que umas trinta…

— Quantas?

— Talvez quarenta…

— Então, durante quarenta dias não conhecerás nem deitarás com mulher, será tua penitência.

— Ia esquecendo, não reconheci dezesseis filhos bastardos!

— Dezesseis ave-marias será tua penitência.

— Deitei com a rainha no leito real!

— O quê? Pecado gravíssimo, filho! Não só aos olhos de Deus! Cometeste alta traição ao rei, e à própria rainha, mesmo tu, Valderico, sendo o maior herói do reino poderás ser enforcado e esquartejado! E tua pobre alma arderá no Inferno eternamente!

— Mas estou confessando meu pecado, e farei qualquer penitência, até mesmo me autoflagelar!

— Ouve filho, grandes pecados, exigem grandes penitências.

— Então, o que devo de fazer, meu abade confessor?

— Hoje nada farás. Vais e repousa. Mas amanhã, deves tomar um bom banho, com muitos esfregões nas tuas armas naturais. Em seguida vestirás o teu brial de cavaleiro. Ao cair da tarde, virás procurar-me, sem que ninguém perceba, em meus aposentos particulares aqui na abadia. Aliás, será melhor uma hora depois do pôr do sol.

 



(15 de outubro/2014)
CooJornal nº 911


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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