15/09/2014
Ano 18 - Número 907

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O preferido do rei

Carlos Trigueiro - CooJornal

Nos tempos da reconquista do solo ibérico aos muçulmanos, quando pequenos feudos formavam o reino de Leão, as façanhas de Valderico corriam de boca em boca. Cavaleiro descendente de guerreiros celtas e visigodos saía-se vencedor em qualquer tipo de combate ou escaramuça. Os inimigos o temiam. E tremiam ao saber de seus feitos. Granjeava admiração ou inveja de seus aliados.

Ficando a sua bravura pouco aquém do disse-que-disse — a mídia daqueles tempos —, a fama do cavaleiro acabara vazando as fronteiras asturianas. E como cruzar a ponte entre a fama e a lenda era questão de encompridar a língua, disso se encarregavam os bufões palacianos — marqueteiros medievais — sabedores de que a mente humana costuma dar pés ao que vê, e asas ao que imagina.

Enfim, os sarracenos estremeciam ao ver a soberba figura de Valderico senhoreando sua montaria, com o brial de cavaleiro e a armadura reluzente, destroçando tendas, barbacãs ou guaritas, e espalhando mortes a golpes de espada, maça, lança, ou com os próprios punhos. Naquelas liças encarniçadas, nunca um infiel sobrevivera à fúria do guerreiro asturiano. Tal bravura o tornara vassalo preferido do rei.

Mas como tudo neste mundo tem seus prós e contras, a distinção concedida a Valderico nos campos de batalha deixava o monarca pouco confortável na paz do cotidiano: cobria-o de honrarias ou concedia-lhe favores. As honrarias seguiam os ritos das justas medievais. Já os favores tomavam caminhos sinuosos, pessoais, não raro levando o rei a fazer vista grossa aos caprichos sentimentais do cavaleiro. De fato, além de temível nos campos de guerra, Valderico era rastreador compulsivo dos fetiches femininos.

Conhecido o lado glorioso do cavaleiro, forjado e temperado nos campos de batalha, passamos àquelas lides, não menos perigosas, entre as muralhas dos castelos, nem menos inocentes travadas nos redutos acortinados das alcovas, sob a pureza contestável dos lençóis.

Ouviam-se nos corredores, torres, paços, pontes, guaritas, muralhas, em todo o castelo, que raras mulheres da corte conseguiam rechaçar os assédios do herói.

Numa ocasião, havendo o rei se deslocado às terras galegas, não muito longe do que viria a ser o caminho de Santiago, coincidiu na ausência do soberano que o seu vassalo preferido retornasse antecipadamente de vitoriosa missão contra os sarracenos nas fronteiras ao sul. Mal o herói se desvencilhara das parafernálias de combate, irrompeu nos alojamentos da armaria do castelo um mensageiro real.

— Nobre cavaleiro Val­de­rico, trago mensagem de Sua Alteza, a rainha!

Embora surpreso com a presença tempestiva do mensageiro, Valderico não se alterou.
— Com que mensagem me honra Sua Majestade?

— Sua Majestade ordena-lhe comparecer aos seus aposentos reais, amanhã, uma hora antes do pôr do sol.

— Diga à Sua Majestade que o seu fiel vassalo, com grande honra, ali estará na hora aprazada.

Já o mensageiro iniciava mesuras para afastar-se, quando ocorreu a Valderico perguntar-lhe.

— Aconteceu alguma coisa fora dos costumes à Sua Majestade durante a ausência do rei? Estou pouco informado, pois estava a combater o inimigo infiel além das margens do Douro.

— Nobre cavaleiro, apenas sei que Sua Majestade, a rainha, anda maldisposta nos últimos dias. Agora, se me permite…

— Vá, vá mensageiro, e confirme à rainha o que já lhe transmiti.

No dia seguinte, a natureza cobriu de beijos ensolarados o verde úmido que ainda hoje engalana os montes asturianos. Valderico preparou-se dignamente, e dois pajens deram-lhe banho numa tina adaptada ao enorme guerreiro. Sendo costume somente dois ou três banhos daquele tipo por semestre, talvez por ano, uma visita aos aposentos da rainha requeria sacrifício de imersão e esfregões extras.

O pôr do sol fugia pela encosta dos montes, quando Valderico atravessou garbosamente a ala do castelo que levava aos aposentos da rainha. O brial de cavaleiro cobria-lhe vestes palacianas. Espada curta embainhada na cinta. A guarda real reconhecendo o herói, imediatamente deu-lhe passagem nos corredores sombrios.

O mesmo ocorreu no vestíbulo que antecedia a câmara real, quando cinco aias que guardavam a entrada reconheceram Valderico. Três delas lançaram-lhe olhares tão afiados quanto cimitarras sarracenas. Talvez numa tentativa imaginária de cortar-lhe as tramas do brial, suas vestes, e ver o gigante guerreiro despido. As outras abaixaram a cabeça com reverência desconfiada, mas pensamentos suspeitos. Todas suspiraram quando, na passagem do guerreiro, recendeu o cheiro inconfundível do banho tomado. Mas na cabeça de Valderico transitou outro gênero de questão, qualquer coisa como a diferença entre montar selas ou saias.

Vencidos corredores, vestíbulos, guardas e aias, Valderico em carne, osso e brial, apresentou-se à Sua Majestade, ajoelhando uma das pernas no chão, como era reverência de praxe nas saudações aos soberanos. Estando a rainha deitada sobre grandes almofadas no leito, o guerreiro achou por bem mencionar preocupação com a sua saúde.

— Vossa Majestade ordenou que estivesse aqui uma hora antes do pôr do sol, pois bem, cá estou, em carne e osso, cavaleiro Valderico de Santullano, Valdedios, Lena, Oviedo, Naranco e Leon…, mas a minha nobre senhora parece não estar bem-disposta…

— Cavaleiro Valderico agradeço-vos a presença, mas antes de qualquer conversa, melhor saberdes que, por minha ordem, entre este pôr do sol e a aurora de amanhã, todos os meus guardas, servos, aias e camareiras vão empenhar-se em tarefas longe da câmara real, de modo que, de agora em diante, tudo o que falarmos, tudo o que aqui ocorrer, tudo o que aqui fizermos, ficará entre estas frias paredes, nós dois, e Deus, talvez. Ordeno-vos juramento à rainha!

— A ordem de Vossa Majestade será cumprida por este fiel servo mesmo que eu tenha de apressar o pôr do sol ou retardar a aurora com a espada que trago na cinta. Tem meu juramento, nobre Senhora!

— Alça-te! Era o que esperava ouvir do maior herói do reino. Pois, pois, valoroso e fiel Valderico, durante algumas horas, vamos tratar-nos de tu, e guarda a tua espada para outras causas… Sabes tu que, desde menina ouço teus feitos e glórias, e todos falam de ti, e… bem… sempre sonho contigo…

— São exageros majestade, apenas cumpro o meu dever de vassalo preferido do rei… — Tentou argumentar Valderico.

— Ouve Valderico! O rei está ausente, e pode até morrer nos campos de batalha, está ficando velho e fraco, e tu sabes que ainda não entrei na carreira dos trinta. Ora, pois, quero então saciar agora mesmo todos os meus desejos em relação a tua figura de cavaleiro e herói, quero ouvir de viva voz aquilo que mais te dá prazer nos campos de batalha, pois o tempo passa e teus feitos parecem cada vez mais assombrosos, excitam-me a imaginação, caso compreendas um pouco da alma feminina!

Estando os heróis sempre prontos a enfrentar o inusitado, Valderico pareceu não se alterar, e maior foi a dificuldade de mudar o tratamento pronominal ordenado pela rainha do que, naquele momento, apagar do pensamento a figura do rei. Então, reiniciou o discurso com eufemismos logo envolvidos pela excitação.

— Exageram minha nobre rainha, apenas luto com denodo por fidelidade aos meus senhores e à causa cristã. Verdade que herdei de meus ancestrais visigodos desejo insaciável para o combate, principalmente o corpo a corpo. E me apraz nos campos de batalha montar meu cavalo, e com a lança retesada derrubar o inimigo de sua montaria, e… bem, depois sentir o infiel estremecer por inteiro ao trespassar-lhe minha espada! E também…

Valderico falou, falou, e falou. E tanta era a vibração que instilava na voz que gotas de suor lhe escorreram da fronte e se infiltraram nas barbas. Mas como homens de ação são objetivos e não se perdem em elucubrações, logo constatou que tanta vibração não vinha da fala, mas do falo.

Enquanto o herói discursava, a rainha parecia enfeitiçada. Rito estudado, soltou os longos cabelos de ouro, livrou-se de almofadas e lençóis, içou o tronco esbelto e, com movimento estratégico preciso, deixou metade do corpo níveo cruzar as fronteiras do decoro. Em seguida, passou da estratégia à tática, apontando agressivamente na direção de Valderico dois aríetes bicudos e, claro, majestosos. De repente, a boca em arco disparou seta indefensável.

— Ordeno que tolhas o brial de cavaleiro e todas as tuas vestes, para que eu possa ver tuas origens celtas e visigodas, tuas armas naturais.

— Majestade!…

— Jurastes…

— Jurei… minha rainha…

Até então nenhuma cimitarra moura fizera zunido semelhante àquele que Valderico sentiu nos ouvidos. Estratégia por estratégia, tática por tática, fidelidade ao rei por fidelidade à rainha, vendaval desarrumou-lhe as ideias por um instante, e como a vida é feita de momentos e, às vezes, há momentos que valem a vida inteira, a arquitetura celta e visigoda do seu inconsciente desabou com um grito tribal, interior e milenar: “Guerra é guerra!” E mais rápido que o voo do falcão, tolheu o brial e despiu-se.

(continua)



(15 de setembro/2014)
CooJornal nº 907


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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