01/09/2014
Ano 18
Número 905

 

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Venha nos
visitar no Facebook

 

Carlos Trigueiro




O HOMEM QUE PERDEU O DIA A DIA (ó)

Carlos Trigueiro - CooJornal

***

Os ponteiros do velho relógio de parede perfilaram-se ao meio-dia, exatamente quando o juiz Bartolomeu, antigo frequentador, chegou ao pequeno restaurante. No passado, tinha sido vezeiro em discussões e conversas que rivalizavam em sabor com as iguarias quase domésticas do cardápio. Mas já de boa data não aparecia por ali. Ultimamente aprazia-lhe variar de companhias e de restaurantes. E só quando precisava meditar sobre algum enigma almoçava sozinho. Após olhadela no recinto tratou de acomodar-se numa mesa mais afastada do burburinho. O que sabia ser em vão, tais as contidas dimensões do restaurante. Nem bem se sentou, chamou-lhe a atenção o diálogo que vinha de mesa próxima. Dois cavalheiros falavam do dia a dia. Não resistiu à indiscrição de ouvir a conversa, mesmo porque ambos discursavam abertamente. Também não refreou o impulso de abandonar a mesa escolhida e dirigir-se aos conversadores. Aproximou-se e, sem nenhuma hesitação diante da curiosidade do par, puxou cadeira e conversa:

- Com licença, meus senhores, estava ouvindo a interessante discussão sobre o dia a dia, e como ando perquirindo o assumo, por este ou aquele motivo, permito-me a liberdade de importuná-los para aduzir algumas impressões. Penso que o dia a dia vivido na forma como descreveram não passa de uma masmorra. Por isso, constitui engodo pensar que o dia a dia é um bem e que alguém o possui. Ao contrário, o suposto possuidor é que se deixa arrebatar e escravizar por ele. A submissão ao dia a dia tolhe o bom senso do homem. E sem bom senso o homem se torna um fantoche a mercê das circunstâncias. O sentido da vida está em modificar o dia a dia, assim como nós mesmos nos modificamos a todo instante, todos os dias, durante a vida inteira, mesmo sem percebermos. Até na hora de morrer. Embora disso já tenhamos prestado contas à Natureza durante todo o tempo. Cheguei à conclusão de que o grande significado da vida está em dar um destino digno ao dia a dia. Nisso reside a verdadeira nobreza da existência. Porque, normalmente, todos nós somos arrolados por nossa visceralidade, nossa circunstancialidade emocional e imediatista. O destino do dia a dia deve transcender nosso racionalismo egoísta de sobrevivência. A beleza do dia a dia esta em poder renová-lo todas as manhãs, modificando-o, retocando-o, aprimorando-o. O dia a dia tem de ser pluralista e benfazejo. É nosso instrumento, nossa ferramenta para aprimorar o mundo. Recheando-o de novas e positivas vibrações. Incutindo-lhe alegria, bons presságios e, sobretudo amor. O dia a dia sem amor é como o vácuo. É estéril. Nada cria nem prospera. Se não me engano, ouvi falarem que o Estado havia confiscado o dia a dia. Pois bem, digo-lhes de coração que se alguém assume que perdeu o dia a dia é porque nunca o encontrou. Nunca. Não está na mecânica da repetição rotineira o sentido do dia a dia. A compreensão do que consiste o dia a dia só é possível para aqueles que o desfrutam na dimensão de uma inteira vida. Ou melhor dizendo, o dia a dia automatizado, mecanizado que seja não tem essência espiritual. Só tem matéria bruta. Muito bruta. Não tem anima, não tem alma, não tem sentido, mesmo porque até os minerais vivem, evoluem, mudam de consistência, de coloração, de habitat e às vezes até migram e levam junto o coração de suas famílias... as suas estruturas moleculares, com afiliados e agregados. E isso acontece no tempo. O tempo é uma dimensão ainda não bem entendida pelo homem comum. Para entendê-la, superficialmente, o homem comum adotou sistemas de mensuração que são baseados no raciocínio lógico e na observação das incidências fenomenológicas que por sua vez obedecem a critérios simbólicos como as estações, o ano, o mês, as horas, o dia e finalmente o dia a dia. Mas poucos percebem que o dia a dia é nascer, crescer, viver, morrer e renascer sempre. É um ciclo completo. É a vida inteira concentrada numa dimensão miniatuarizada pelo vão artificialismo do homem. É necessário compreender que o dia a dia tem um sentido, uma direção, um destino. Isso, um destino. Ora, o destino está numa dimensão muito superior ao tempo e espaço - as dimensões basilares do homem comum. O destino é a fatalidade, o fatum, o karma, zadig ou como queiramos chamar em outros idiomas. Mas o fato é que o dia a dia tem um destino muito maior que nossa compreensão materialista e imediatista. E qualquer coisa que comporte o destino em sua acepção maior deixa de ser perceptível, mensurável, aferível. Caso contrário, não estaríamos nós três aqui reunidos numa mesinha de restaurante opinando sobre o dia a dia. Alguma coisa mais poderosa do que nós e nossos objetivos, em geral egotistas, nos reuniu em nosso dia a dia. Talvez as mesmas apreensões, as mesmas preocupações, a mesma sintonia com algum problema comum a nós três. Falando tanto, esqueci de apresentar-me, sou Bartolomeu e os senhores?

- Bem, eu sou Justiniano, advogado do meu cliente aqui ao lado, o Sr. Junqueira. Muito prazer - disse o advogado, e acrescentou: - Mas e o cavalheiro que fala tão bem é um político? Seu semblante não me e totalmente desconhecido.

- Ah, sou juiz. Juiz federal. Fui investido nisto pelo Estado - arrematou o magistrado.

- Curiosa coincidência - inseriu-se o aposentado - estamos pleiteando a devolução de meu dia a dia junto à justiça federal, por motivo de aposentadoria - franzindo as nervuras da testa, acrescentou reticente: - quase à revelia...

- Sob o crivo da lei antecipo que e absolutamente impossível ao Estado, até mesmo presumir restituição de tal imponderabilidade - aduziu firme o juiz.

- Talvez, quem sabe, demande algum tempo, requeira perícias, análise documental, convocação de testemunhas etc. - tentou ponderar o advogado, meio circunspecto.

- Não creio - disse ainda mais sério o juiz. - Há certos casos que fogem às prescrições, é verdade, requerem jurisprudência, onde entra inevitavelmente o enfoque interpretativo dos juristas sob ótica mais abrangente do que a dos códigos legais. Procuram os doutores da lei, nesses casos especiais, deliberar com o propósito de solver não só a causa em si, mas também aplicar princípios benéficos ao aperfeiçoamento da sociedade e da própria civilização. Sem nenhum constrangimento, reafirmo que se alguém reconhece haver perdido o dia a dia, é porque não só nunca o encontrou, mas também não mereceria recuperá-lo.

- Mas isso é discriminação com um ser humano, digamos que, como todos nós, ainda não é um ente perfeito e acabado, está aprendendo, evoluindo, retocando-se... - ponderou o advogado.

- E além do mais, fez tudo aquilo que deveria fazer na vida com a melhor das intenções - aduziu o aposentado.

- Sei, sei - começou a replicar o juiz -, mas a questão é que se examinarmos ao redor, constataremos que todos os seres, animados ou inanimados, têm uma finalidade precípua, neste mundo de Deus. E esta finalidade é onisciente.

A formiga que prepara sua horta subterrânea, a cigarra que saúda o crepúsculo, o morcego que macula o fruto, o mocho que anuncia a noite, o pássaro que bica estames, os grãos de pó1en que perpetuam as espécies, a chuva que fecunda os prados, os peixes que se multiplicam, a nuvem que passa, o vento que sopra, o mosquito que zune, a cascata que flui, o sacerdote que prega, o medico que cura, o advogado que acusa ou defende, a criança que choraminga, a mulher que vai parir, o seio que apascenta, o déspota que manda, o escravo que obedece, o bárbaro que faz ou desfaz, o político que constrói ou devasta, o pensamento do líder que orienta ou desatina. Enfim, tudo tem sua finalidade. E toda finalidade é dia a dia, é existência, é destino. Isso não se perde. É inerente a quaisquer tipos de seres e a qualquer ação deles redundante. Mais que isso: o dia a dia é o futuro, o porvir. Não se pode perder o que ainda não aconteceu. O passado e o presente não existem em termos de dia a dia. Só o futuro.

- Então - apressou-se o aposentado para questionar - não posso recuperar o dia a dia por que ele ainda vai acontecer?

- Isso mesmo, o destino do dia a dia tem de acontecer ainda, ou ser construído, se imaginarmos que o homem primeiro concebe isso no pensamento, diferentemente dos outros seres.

- Para concluir - disse o advogado -, são muito remotas as chances de se obter na justiça ganho de causa para o meu cliente e recuperar-lhe o dia a dia. Ao menos nos termos em que recorremos, ou seja, com base num presumido dano infringido à rotina de sua vida?

- Perfeito, meu caro advogado. Asseguro-lhe que, aplicada toda e qualquer juridicidade, e um mínimo de bom senso, a petição seria denegada em caráter irrecorrível.

- Que acha disso? - Perguntou o advogado ao aposentado, quase com ar de satisfação pelo que tinha ouvido do juiz.

- Bem, se o meu dia a dia não puder ser recuperado intercedeu o aposentado, talvez tenha chance de ganhá-lo mais para frente. Afinal, se o dia a dia é o futuro, quem sabe o juiz que julgará a questão pensará de modo diverso? Quem sabe não sucederão fatos novos, mutações sociais, novas leis etc.?

- Não creia nisso. Embora não seja ético, diante da questão tenho de antecipar-lhes algo mais. Portanto, adianto-lhes que esse caso acaba de ser julgado. E "Improcedente" foi o veredicto.

- Mas até esta manhã não havia sido julgado, informaram-me do tribunal - articulou o advogado.

- Acabo de fazê-lo, meus senhores. O caso veio parar em minhas mãos. Pelo inusitado, precisei trazê-lo para fora da atmosfera processual e jurídica. Tem andado comigo para arejar-se. - E abrindo uma pasta de couro, mostrou-lhes o processo. Puxou uma caneta do bolso do paletó e escreveu: "Improcedente."

- Mas o senhor deveria ter-nos avisado que estava realizando o julgamento, ao menos poderíamos argumentar de modo mais ordenado - disse quase enrubescido o advogado.

- Melhor que tenha sido assim - intercedeu o aposentado - pois acabo de sofrer uma mutação psicológica. A partir deste encontro, desta extraordinária coincidência, já não me acho como o homem que perdeu o dia a dia. Vejo que faz sentido nosso dia a dia aqui juntos. E se o dia a dia não é o que passou, mas aquilo que podemos fazer acontecer, não o perderei nunca mais. Meu dia a dia não poderia ter tido melhor destino. Amanhã mesmo vou acionar o Estado para que não se intrometa com o futuro da Repartição. Enquanto viver, lutarei por isso.

***

Quando a imagem dos três interlocutores se dissipou na névoa dos sonhos, o juiz Bartolomeu, meio sonolento, calou o despertador com um toque justo.

E quando a miragem dos três interlocutores se desfez na bruma dos sonhos do aposentado Junqueira, este, meio entorpecido, silenciou com uma palmadela o ruído do velho relógio.

Por sua vez, quando o vulto dos três interlocutores se evaporou na quimera dos sonhos, o advogado Justiniano, modorrento, recobrou-se na poltrona com o que lhe pareceu ser um rumor de campainha.

A Ciência ainda conhece bem pouco sobre a interatividade dos sonhos de várias pessoas. No futuro, saberemos mais. Melhor dizendo, no dia a dia do futuro.

Do livro "O Clube dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.

(01 de setembro/2014)
CooJornal nº 905


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com


Direitos Reservados