10/08/2014
Ano 18 - Número 903

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O HOMEM QUE PERDEU O DIA A DIA (5)

Carlos Trigueiro - CooJornal

O Sr. Junqueira pressionou a campainha do antigo escritório e foi recebido por uma secretária de meia-idade que o reconheceu imediatamente. Adentrou o recinto com a sensação de estar sendo observado do alto das estantes pelas austeras e impecáveis coleções de leis. Após cruzar duas antessalas, enxergou o vulto crescente do advogado sobre uma poltrona, estendeu-lhe a mão e quase abruptamente iniciou conversa:

- Estive pensando, Dr. Justiniano, que junto com o meu dia a dia perdi também poder.

- É mesmo? - Pigarreou ligeiramente o advogado, acrescentando - que espécie de poder?

- Ora, poder burocrático! Aparentemente pode não representar muito, porém, em certas ocasiões, faz do burocrata um potentado. Afinal de contas, no meu dia a dia tinha poderes para dispensar do trabalho pessoas adoentadas, liberava mais cedo aqueles que necessitavam sair, assinava autorizações para pequenas compras de material de expediente ou outras minúsculas despesas extraordinárias. Antecipava ou adiava reuniões. Atendia chamadas telefônicas para explicar muitas vezes o óbvio, porque como sabe há pessoas que se comprazem em perguntar por telefone e só por telefone. Porém, só alguém com a autoridade calcada no poder é capaz de satisfazer tais demandantes. Autoridade não é poder? Que mais? Ah, detinha o segredo do cofre da Repartição há mais de trinta anos. Como chefe do setor, também custodiava a cópia de todas as chaves de todas as gavetas, escrivaninhas e armários. Se sucedia a alguém perder uma chave, ou tê-la quebrada tinham de vir a mim... É isso mesmo, Dr. Justiniano, as pessoas só pedem a quem pode dar. E eu podia tanto! Os mais novos pediam-me conselhos, os faltosos pediam-me desculpas, os mais antigos pediam para não serem incomodados, os fuxiqueiros pediam-me confidencialidade de qualquer modo todos me pediam alguma coisa.

- Reconheço que há algum sentido no que diz, nem é preciso ser um Max Weber para entender a natureza do poder burocrático, meu caro Sr. Junqueira, mas esses aditivos não trazem fato novo à essência da questão.

- Lógico que trazem, pois a essência da questão é isso: castraram-me o dia a dia - e o exercício do poder burocrático era parte importante do meu dia a dia. De repente tudo isso se evaporou; o meu vibrante dia a dia se transformou numa "noite a noite' silente. Esse tipo de poder tem muitas facetas: assinar papéis, por exemplo, - sejam autorizações corriqueiras ou justificativas dispensáveis, ou papéis que cancelam papéis logo revigorados por outros que a seguir serão cancelados; apor um carimbo ao lado, acima ou abaixo de outro carimbo na escala hierárquica processual; criar novos mapas de controle sobre os volumes de serviços sobre as metas, ou sobre o controle dos controles. E também representar a entidade em bons e maus momentos. Fui a centenas de funerais, sem nunca ter visto os defuntos em vida - mas sempre representando a Repartição. E a casamentos, cerimônias de noivados, de bodas de prata, batizados, primeiras comunhões, festas juninas com ou sem balões e fogueiras; fui a ensaios de escolas de samba que se preparavam para o desfile glorioso nos dias de Carnaval, a churrascos e feijoadas com ou sem motivo de comemoração... e tudo o mais... Na maioria dos casos não me conheciam como pessoa - eu, Junqueira nem eu conhecia a tantos fulanos, mas meu aperto de mão como 'chefe da repartição' era sempre bem-vindo, aguardado pelos fotógrafos e, algumas vezes, cheguei a ser entrevistado por colunistas de jornais.

- Sei, sei disse o advogado, adotando com as mãos posição sacerdotal -, mas durante tantos anos de carreira, o senhor não se perguntou uma única vez sobre o futuro pós-profissional, o fim da carreira, o tempo de descansar na velhice? Hoje há até cursos de preparação para a aposentadoria...

- Sei que em países mais adiantados há preparação, quase que treinamento, para assumir o processo de desativação profissional. Mas nesses países a perspectiva de vida é maior, de fato é necessário preparar uma multidão de idosos para a inatividade. Por outro lado, sei que no Japão, por exemplo, ex-funcionários tornam-se consultores da antiga empresa a que serviram, ou assumem posição de conselheiros honorários. Nos Estados Unidos, muitos aposentados se tornam palestrantes e conferencistas - transmitem às elites emergentes ensinamentos baseados na experiência que viveram; enfim, não desaparecem, ou melhor dizendo, não têm o dia a dia totalmente extirpado.

- Continue Sr. Junqueira, - encorajou pacientemente o advogado.

- Ah! Recordo as reuniões de trabalho do dia a dia com início remarcável e encerramento imprevisível. Algumas intermináveis, claro. Era certo (ou errado) que em muitas delas se falava de tudo, mas nunca daquilo que se devia. Também se discutia o indiscutível, mas eram reuniões de verdade. Sim, porque havia reuniões fictícias que serviam de desculpa ou esquivo, quando se evitavam telefonemas de algum chato, ou a insistência de funcionário hierarquicamente inferior precisando despachar processos melindrosos. Havia também nos recintos destinados aos serviços de recepção e telecomunicações, algumas secretárias abelhudas - geralmente apadrinhadas por algum notório figurão -, que espichando olhares e ouvidos curiosos, auscultavam mentiras domésticas e verdades extraconjugais. Daí aos cochicheios, bastava a ação catalisadora da hipocrisia. Dependendo da emulação, mentiras vazavam como verdades e falos consumados transpiravam sob a forma de probabilidades. Aqueles cochichos, no que tinham de bom ou de ruim, temperavam o desenrolar do expediente e tornavam a rotina da dia a dia menos insossa - fraseou melancólico o aposentado.

- Vejo que o seu dia a dia - interveio o advogado - apesar de constituir um mosaico de eventos, ações e reações, mantinha certa estabilidade. Seria decorrência da estabilidade do servidor público no emprego?

- Reconheço que a estabilidade tem efeitos ambíguos. De um lado, cria condições emocionais para a realização de um trabalho com maior precisão, pois está isento de pressões como a competitividade, por exemplo; de outro angulo, ela pode favorecer o marasmo, principalmente na criatividade, por falta de estímulos. Porém, a condição de privilégio da estabilidade é absorvida no dia a dia. Ninguém pensa mais nisso. Não surgem ilações sobre o assunto. O dia a dia se torna mais importante que o salário, a carreira, o futuro...

- Acho que o dia a dia despendido de modo burocrático. como o do servidor público obcecado pela repartição é massacrante e a alienador, um entorpecente feito de tempos e movimentos repetitivos e paradoxalmente inacabáveis - avançou de modo conceitual o advogado, mas nitidamente provocativo, como se tivesse alguma ideia em mente. E continuou: Daí, talvez, ser necessário nunca se entregar a suas aparentes mutações diárias, porque de fato nada está mudando. O dia a dia apenas se apresenta com indumentária trocada. Faz-me lembrar do presidiário que todos os dias muda de roupa mas usa sempre o uniforme listrado.

- Nunca pensei nisso, talvez tenha razão sobre o dia a dia burocrático. Realmente a natureza do trabalho não credencia ninguém a grandes vãos, aliás, já lhe disse que a criatividade..., mas por que a comparação com o uniforme de presidiário? Afinal todo mundo tem que ter seu dia a dia, seja presidiário ou...

- Desculpe-me interrompê-lo - disse o advogado olhando o relógio de pulso mas gostaria de convidá-lo para almoçar Podemos ir a um restaurante português aqui pertinho. Comida quase caseira. Não vou lá faz muito tempo. Antigamente era lugar frequentado por advogados e magistrados porque próximo ao Fórum de Justiça. Pura conveniência. De qualquer forma gostaria de sair um pouco. Essa conversa sobre o dia a dia incitou-me o espírito a fugir da rotina. Se concordar, continuaremos a conversa durante o almoço.

- Claro, claro, está bem, aceito o convite com muito gosto. Aliás, é o primeiro depois que, desculpe a insistência, perdi meu dia a dia. Vamos andando que a hora é boa, quase meio-dia.

(continua)

Do livro "O Clube dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.

(10 de agosto/2014)
CooJornal nº 903


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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