25/06/2014
Ano 18 - Número 897

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

 

Carlos Trigueiro



O HOMEM QUE PERDEU O DIA A DIA (2)

Carlos Trigueiro - CooJornal

De repente, por coincidência, apareceu-lhe aquele processo relativo a uma pretensa devolução do dia a dia. Recomeçando a pensar, rebuscou o início de tudo, com os olhos fixos na fumaça imaginária que extraía do cachimbo. O fiozinho prateado da memória iniciou um exercício que vinha se tornando regular. O mundo começara no volteio das águas do Rio Madeira, com seus meandros preguiçosos se entortando mata adentro, ora à direita, ora à esquerda. Nascera por aquelas bandas do antigo Território do Guaporé, num batelão, em noite de lua cheia com clarão suficiente o bastante para que a parteira improvisada lhe costurasse um umbigo decente. "As vozes da mata benzeram o recém-nascido e as estrelas lhe auguraram vitorioso destino." Sempre ouvira falar disso, ora pela boca dos familiares enquanto viveram, ora pela insinuação de compadres e comadres enquanto sobreviveram aos desguios do destino. Empalmou o cachimbo com mão firme, como se previsse um solavanco. E aconteceu mesmo. As águas do rio Madeira e as enxurradas da vida carregaram as ambições da família Bartholomeu rumo abaixo, em direção ao senhor de todos os rios - o barrento Amazonas, até onde ele se agiganta quase como um oceano, envolvendo tudo o que lhe afronta: animais, canoas, barcos, batelões, navios, comboios, transatlânticos, árvores desgarradas das margens ou imensas ilhas de canarana - nas proximidades de Belém do Pará.

Foi na doce umidade de Belém que seu eu circunstancial - o mundo no dia a dia - cresceu e prosperou. Era mais ou menos assim que entendia enxergar o mundo e de igual modo imaginava ser visto. Primeiro como esmirrado estudante de grupo escolar, correndo pelas calçadas imensas sob os braços de frondosas mangueiras que cobriam as avenidas do Centro. E saltava. Toda a vida saltou. Em Belém, pulava sobre a água empoçada pela chuva, nas reentrâncias dos passeios levantados pelas robustas raízes das mangueiras que forçavam passagem através da camada de cimento. Saltava de noite, nos quintais, fugindo de morcegos ou espantando bacuraus. Saltava sobre peixes enfileirados pelo chão no fantástico mercado Ver-o-Peso, entre uma barraca e outra, provando, aqui e ali, mingaus de banana pacovã ou tapioca. Ia saltando, ás corridelas, esquina cá, esquina lá, em busca das biroscas onde vendiam açaí, exploradas por emigrantes japoneses que esmagavam os caroços do fruto em maquininhas rudimentares mas eficientes.

Sim, seu mundo fora feito de saltos. Saltaram-lhe a data de nascimento quando do preenchimento da certidão. Saltou da alfabetização para o liceu. Depois, saltou os períodos preparatórios. E aí vieram os saltos decisivos: para o Rio de Janeiro, a Faculdade de Direito e o primeiro lugar no concurso para juiz. Do namorico saltou para o casamento e a constituição da família. Depois, os saltos na carreira. Agora, passados quarenta e tantos anos, vinha pensando em como seriam os saltos finais, pois avançava na terceira idade. Sobressaltou-se. Como seria o salto para o fim? Ele que se acostumara a vencer, sempre utilizando o bom senso. Os saltos sempre vitoriosos... Enquanto trabalhasse, ia vivendo, a saúde era boa e o raciocínio vivaz. Porém, entraria dali a pouco na aposentadoria compulsória. Tinham de abrir vagas para novos juízes. O que seria da vida? Ele e a mulher, um casal de velhos num país de maioria jovem. Em que tudo é feito para a mocidade. E depurou o pensamento: "O Brasil é um país estonteante, um matrimônio de cores agressivas com movimentos sinuosos, mas de gente nova - e as pessoas vivem rapidamente. Trabalham cedo. Logo se acasalam. E cedo têm filhos. Vivem rapidamente. Correndo para todos os lados. Fruem de modo intenso. Também cedo se aposentam. Ou morrem prematuramente. Ou desaparecem dos círculos sociais. Não chegam a ficar velhos. Raros envelhecem. A gente nova está sempre chegando. Mandando e desmandando. Aos velhos não se dá valor. Não se lhes veneram a sabedoria e experiência acumuladas como nas civilizações do Oriente. Nem mesmo se lhes concede o respeito que desfrutam nos países desenvolvidos do Ocidente. Brasileiro em geral morre cedo. As exceções de longevidade no país, infelizmente, quase se restringem aos titãs do poder político. Ou do poder econômico. Esses vivem muito, vivem até demasiado. Pior ainda: têm sobrevida. Até nisso constituem oligarquias privilegiadas - revivem e sobrevivem, através de clãs egocêntricos. E se eternizam, em detrimento dos marginalizados, dos não favorecidos pela manipulação do poder. A sociedade brasileira tem sido uma sociedade de marionetes. Mesmo a História do Brasil tem sido uma história de conchavos e modismos. O descobrimento foi um conluio entre as cortes lusitanas e castelhanas. A colonização um rol de favores tramados no paço real português. A independência, uma partilha familiar. A abolição, um acerto de passo com a marcha do mundo. A república, um modismo regimental. O Estado Novo, um modismo autoritário. O militarismo de 1964, uma acomodação de velhas oligarquias com outras mais antigas. E a chamada 'redemocratização', foi, tem sido e será uma cooptação entre as oligarquias antigas e aquelas surgentes. Nunca, nunca nada de rupturas. Sempre conchavos. O país tornou-se uma bomba-relógio! Cacete! Isso é um discurso político. Os colegas de tribunal sempre me consideraram simpatizante das esquerdas. Bolas! Tinham de ter inveja de meu notável bom senso. E, no entanto, aquilo não tinha nada de esquerda. Era mesmo questão de bom senso. Bastava averiguar a representatividade da sociedade através do Congresso Nacional - deputados e senadores eleitos pelo sistema de sufrágio universal e constatar quem representava - ad perpetuam - os interesses do povo: bandos de usineiros de açúcar imunes à maria-anjica e às cobranças judiciais por inadimplência -, coronéis sem galão nem vergonha, latifundiários, banqueiros sem decoro, donos de cartórios, oligopolistas, cartelistas, lobistas e outros mais desbandados mas não menos concentradores de rendas, corruptores, corruptos em surdina, ou detratores de fundos públicos. Os mandatos políticos serviam para usufruir imunidade e desfrutar de impunidade, num círculo vicioso e cruel. Essa estirpe de malfeitores engravatados tinha vida longa e revulsiva, alem de panças abundantes e contas bancárias recheadas. Lógico que havia exceções, mas raras exceções." Nesse ínterim, um anel de fumaça imaginária se desvaneceu. Um sopro de lucidez esfumou o devaneio político e trouxe o magistrado para o plano de sua circunstancialidade pessoal.
 

(continua)

Do livro "O Clube dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.

(25 de junho/2014)
CooJornal nº 897


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

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