16/10/2014
Ano 24
Número 1.244

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

 

Carlos Trigueiro



O HOMEM QUE PERDEU O DIA A DIA

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

De fato, aquele era um estranho processo. Alguém estava recorrendo à Justiça sob a alegação de que o Estado lhe havia tomado o único bem. Mas não um bem qualquer, mensurável como um terreno, luzidio qual um automóvel, ou atingível como a moral ou a honra. O presumido usurpado exigia do Estado a restituição do tal pertence. Algo que o demandante havia carregado, usufruído, feito, mimado, refeito e vivido, intensamente, por toda parte e a vida inteira. O teor da petição preenchia os requisitos jurídicos, embora enredasse em digressões, pormenores, citações e paradigmas até perorar o mérito da questão. Certa prolixidade poderia ser justificada pelo paradoxo da questão em si - tão simples quanto absurda. Assim, o documento era fartamente descrito, havendo força nos argumentos, bem como a arguta ponderação dos que conhecem na intimidade o espírito da lei. Enfim, o postulante estava a exigir do Estado a devolução do dia a dia, ou melhor, do seu dia a dia, bem que considerara confiscado por ocasião da aposentadoria. Tramitando pelas veredas dos tribunais, vencendo labirintos burocráticos e instâncias processuais, o caso foi parar nas mãos de renomado juiz.

Nos últimos anos, quando se defrontava com processos insólitos, ou fora dos parâmetros de sua larga experiência nas lides da Justiça, o juiz Bartholomeu preferia estudá-los em casa, recostado na poltrona favorita, sob a intimidade dos pijamas, o conforto dos chinelos e a inspiração de uma aura de fumo imaginária proveniente do cachimbo que de há muito não acendia. Nessas ocasiões, bem refestelado, aprazia-lhe exercitar a memória recolhendo passagens da própria existência. Era a "recriação do dia a dia" - expressão que havia cunhado no remoer de suas conjecturas. Não por saudosismo peculiar às provações psicológicas da terceira idade. Fazia-o por experimentalismo, ele que, nos bons tempos, criara fama de emérito polemista. Ou como mesmo admitia, pela satisfação pessoal de verificar que mantinha o cérebro saudável. E, ainda, pela aceitação racional de que o inexorável escoamento do tempo prima, na alma humana, por retocar e não raro refazer a lógica da vida e do mundo.

Após uma primeira leitura nos processos inusitados, fechava-os por bons momentos e punha-os à parte, sobre uma mesinha de tampos geminados. Isso feito, costumava passear o pensamento pelas origens de seu mundo circunstancial. Em verdade, o mundo para ele começava muito minúsculo sob um alvéolo quase perdido da mente, mas que o lume da boa memória conseguia recuperar. Não obstante constituírem divagações entremeadas de nebulosas emocionais, sua bússola neuronal era corretíssima porque a natureza lhe presenteara um notável bom senso. "Talvez por isso me tornei juiz. Contudo, podia ser bem-sucedido em qualquer outra profissão se o bom senso fosse pré-requisito indispensável." Assim pensava. "E como essa prerrogativa respalda qualquer mester e, praticamente, tudo na vida depende de bom senso, até mesmo um veredicto de cunho religioso diria que Deus me aquinhoou esse dom perfeito. Perfeito apenas, porque no gênero humano, somente aos músicos Deus permitiu o bom senso em nível mais que perfeito." E bem assim pensava.

Há tempos vinha meditativo sobre o provável desfecho de sua carreira de magistrado. A aposentadoria viria por limitação de idade. Mas intrigava-lhe o destino da atividade diária a seguir, o escoar do futuro - viver o que lhe sobraria de vida -, enfim, como seria o seu dia a dia? Era evidente que tais ideias vinham se avizinhando mais amiúde e vigorosas. E isso lhe trazia certo desconforto - qualquer coisa como um desafio a seu indefectível bom senso. Por outro lado, havia muito se convencera de que o dia a dia não continha só o imediatismo visceral e emocional das 24 horas que permeiam o individuo. Em verdade, agora, imaginava o dia a dia como certos prismas, refratando a luz em multipropagação, com seus desvios e velocidade únicos, e peculiares a cada onda de luz. Assim também via a existência humana. Cada indivíduo sintetizava em seu dia a dia a refração de sua própria luz da vida. Mas não um mero instante vital. Refratava a luz da vida inteira. Em outros termos, o dia a dia teria abrangências temporal e espacial que superavam o convencionalismo da compreensão mundana. Por isso, o juiz Bartholomeu acreditava que só o homem superior e verdadeiramente livre era capaz de conceber em plenitude o verdadeiro sentido da vida. Aqueles que se dedicavam a viver exclusivamente dentro das fronteiras do dia a dia eram escravos dessa circunstância, acabavam prisioneiros de si mesmos e, no fim da vida, carrascos da própria existência.


(continua)

Do livro "O Clube dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.

RT, 10/06/2014
Ano 18 - Número 895



Carlos Trigueiro é escritor
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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