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25/04/2014
Ano 18 - Número 889

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



METEMPSICOSE (5)
 

Carlos Trigueiro - CooJornal

DIA 28

A página do dia 27 também estava preenchida pelo mesmo sujeito - acho que e homem; ou será mulher? Abuso igual só nos regimes totalitários. Vou fazer o jogo dele - ou dela. Verei que vai dar. Marcho. Em frente. Mais que isso: danço. Como Reinaldo Glière na Russian Sailor's Dance. Sou assim mesmo. Sempre fui. Sempre cheguei à frente. Neurônios em tempo - prestissimo. O tal sujeito (ou sujeita) hoje vai ter uma surpresa. Por que razão bisbilhotar todos os meus egos? Vou contra-atacar. A empregada já foi embora. Primeiro encho a banheira com água morna. Ponho aquelas bolas azuis que trouxe de Paris mês passado. Relaxo o ambiente. Ligo o som: In the Steppes of Central Asia, do Borodin. Vou à estante e recolho os 25 volumes do Diário. Como pesam, até parecem gente. São necessárias não sei quantas mãos. Pronto. Todos sobre a banqueta do banheiro. Agora, um a um, mergulho-os na banheira: "Tibum!" As lombadas carmesim contrastam com o anil. "Tibum!" vezes 25 é igual a: Arff! Estou sufocando, caramba, tenho que sair daqui... Que sensação... glub, glub,, glub..., tenho que conseguir sair daqui, chegar ao tele...fone e pedir socorro. Maldito diário, mal-Di...

DIA 29

Felizmente permaneci sobre a mesinha de cabeceira. Telefonei pra polícia (polícia no Rio de Janeiro é com "p" minúsculo), mas o plantonista disse que não atendiam trotes. Em seguida chamei uma ambulância, mas disseram que as quatro viaturas disponíveis, das 26 da frota original, haviam saído pra atendimentos de emergência. Chamei o porteiro, mas ele ficou com medo de se meter em complicações com a polícia. Telefonei pro síndico do prédio, mas ele havia ido a uma reunião do Lion's. Bati à porta do vizinho, mas a empregada pensou que eram assaltantes e não quis cooperar. Coloquei de novo o Borodin pra me acalmar... Fui à esquina e chamei um assaltante de plantão que me atendeu pronta e prestimosamente. Subiu ao apartamento, fez respiração boca a boca na "Gi" Molhou a cama toda. Tudo ensopado de azul. Praticamente ressuscitou-a. Troquei os lençóis e coloquei-a de bruços pra liberar algum resquício líquido dos pulmões. O assaltante, um sujeito até educado, levou algumas joias, aproveitando a oportunidade. Também levou o relógio e a bolsa de sempre. A "Gi" vai ter de comprar mais uma dúzia de cada. Não se interessou pelas obras de arte. Por sorte era ex-enfermeiro e havia trabalhado em hospitais do Estado - muito antes da agonia estatal brasileira. Interessante que só consigo lembrar-me dos assuntos recentes. Acho que a água diluiu a memória dos 24 volumes precedentes. Pra evitar complicações com a polícia, teletonei pra redação do jornal a fim de que alguém viesse recolher a matéria preparada pela "Gi" para o dia 29. Um indivíduo mal-humorado respondeu que só daqui a quatro anos, pois estávamos em bissexto. Não sei se a "Gi" vai aguentar esperar todo esse tempo. Por via das duvidas estou aqui na estante... pacientemente. Parece que meu caso é uma especie de metempsicose, ou como a "Gi" costumava dizer: "inflacão da personalidade" Assinado: "Di"


(25 de abril/2014)
CooJornal nº 889


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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