DIA 27
O telefone tocou,
tocou, tocou. Sou refratário a secretárias eletrônicas - essas answer-machines infernais que preenchem
espaço vivencial das pessoas e
arvoram-se em instrumentos prestativos; bolas! Se não estou, não estou,
deixem-me ir aonde e quando quero. Perdi a paciência, saí da estante onde estava, acho que da quinta prateleira, e atendi. Era o Sérvio
Túlio. Não
morre tão cedo. Disse-lhe que era um amigo e que tu havias saído para dar uma
volta e meia... Apresentei-me como "Di Vigésimo - Sexto". Ele riu muito.
Perguntou-me se eu era pintor. Respondi que não e que gostava de escrever.
Indagou como ias. Disse-lhe a verdade: pior - numa cinzelada solidão. Sendo
homem de arte, interessou-se pela expressão e quis conhecer-me. Convidei-o
pra vir bater um papo. Chegou sob uma salva de mosquetes fenomenal, em plena
Wellington's Victory, opus 91, do Ludwig Van Beethoven pela Cincinnati
Symphony Orquestra. Assustou-se. Depois, servi-lhe duas doses balzaquianas de
Ballantine's (óbvio que era de trinta anos). Tudo bem. Cruzou as pernas e
falou durante um par de horas. Sendo conhecedor de artes, adorou os quatro
pares de Isfahan com os seus esplendidos heratiic motifs em meia dúzia de
tonalidades de azul sobre piano carmesim. Ajoelhou-se frente ao Thai Buda e
murmurou um mantra. Passeou os olhos pelos óleos e aquarelas. Um dos
surrealistas sugeriu-lhe um Cnidario. Gostou dos closonèes sobre a
mesinha lateral. Levantou o vaso chinês azulão, examinou-lhe a base, passou os
dedos sobre os caracteres e indagou se era da Dinastia Ching. Afirmei-lhe que
sim, precisamente do período de Hsien Feng, 1851/1862. Disse-me que desistira
da vida conjugal. Que fazia parte do contingente de milhares de solitários que
vivem em Copacabana atualmente. Descompromissado com ambos os sexos. Riu muito
quando lhe disse que a tendência dos evoluídos é a assexualidade. Mas falou de
ti com ternura. A união não dera certo, segundo ele, porque mantinhas
pluripersonalidade. Dormias uma e despertavas outra pessoa. E que algumas
Giovannas jamais despertaram. Nasciam diariamente distintas. Filosoficamente
parecias encarnar Nietzsche, ou seja, em permanente evolução. Entravas num
templo de qualquer religião pela manhã e, à noite, escrevias matéria pra
jornais cubanos com pesada carga de agnosticismo metafísico. Era difícil a
convivência. Acrescentou que, embora todos nós tenhamos virtudes e pecados,
não podemos ter mais de uma verdade. Quem escreve - pra viver - muito menos.
Sérvio Túlio não se estendeu, mas eu já o conhecia de muitas páginas.
Bergsoniano: intuição e mem6ria; a matéria e solidificação do espírito. Pediu
pra ouvir Mikhail Glinka: Ruslan e Ludmila. Sabia que tinhas o disco.
Sabia que adoras os russos. Os artistas - os bolchevistas não, isso não.
Deixou-te um bilhete. E um beijo. Disse que voltaria qualquer noite dessas pra
conversarmos outros assuntos. Mal ele bateu a porta, retornei à biblioteca e
perfilei-me ao lado do vigésimo quinto volume na quinta prateleira da estante
principal. "Di" Volto dia 29.
(continua)
(Em O CLUBE DOS
FEIOS & outras histórias extraordinárias-
2ª edição - Editora 7 Letras)
(25 de março/2014)
CooJornal nº 885
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com
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