16/03/2022
Ano 25 Número 1.264
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
DIA 21
Caríssima Giovanna, criei uma força monumental
ao longo desses anos e resolvi enfrentar-te. Saí
da inércia. Do casulo. Marcho. Como Peter Ilych
Tchaikovsky nas circunvoluções-figurações
auditivas da Marcha eslava; um macho: conceber o
demônio da guerra nas entranhas divinais da
música. De fora, sérvios e turcos, como dizia,
resolvi. É que cansei. Fartei-me. Vinte. Mais de
vinte anos a dividir, viver, absorver desabafos, e
a conviver e sobreviver... com desabafos. Teus
desabafos. Tenho sido companheiro, amigo, irmão,
padre, amante, analista, confidente. Um tudo de
pouco. E de muito também. Logicamente levando em
conta minhas limitações. Não rias, estou falando
sério. No início havia o prazer do desconhecido, a
atração pela intimidade não revelada. Eras um
tonel de segredos inebriantes. Embriagava-me
desvendar os túneis de tua mente. Os labirintos.
Aonde iam dar. Hoje não tens cabeçaa. No máximo
ogiva. De peruca.
Marcho. Começou em teu
décimo quinto aniversario. Tempos nostálgicos. A
moral em Cuba. Houve festa, baile, valsa, bufê da
Colombo, penetras e cuba libre. Vim pelas mãos de
uma amiga tua, a Andréa. Cheguei sob os metais do
Ray Conniff. Nossos cumprimentos mentais .
Miraste-me meio encabulada. Depois, sumi em meio
aos outros. Daquela festa: o alinhado desalinho
dos topetes masculinos e a vã porosidade feminil
dos vestidos. Aliás, confidencio: mulher não
veste, vapora. Por um fenômeno qualquer, os
vestidos se sustêm.
Terminaste o Clássico.
Baile no Hotel Glória. Orquestra do Waldir Calmon.
Smokings do Rollas. Os primeiros cigarros com
filtro. Teu namorado chato, acadêmico das Agulhas
Negras, o Wellington. Que trocaste pelo Armando,
estudante de Direito, nem bem a batalha do amor
começara. Armando, apesar do nome participial,
tinha futuro. Não sei no que armandeu, digo, no
que o Armando deu. O baile. Pelas três da manhã, o
estribilho da Cidade maravilhosa desfez laços e
refez abraços. Lá fora, mocidade e insetos
notívagos. Alíferos. Cada especie em seu gênero. E
pares alvinegros foram estreitar-se dentro dos
besouros 80% nacionais da Volkswagen - era o
marketing da moda -, conforme me confessaste no
dia seguinte. A tua frase tênue: "a cidade dormia
sob o ninar das estrelas" Naquele tempo a cidade
dormia. E agora posso te dizer: cidade que não
dorme se torna neurótica, agressiva, violenta,
angustiada, ansiosa, repressiva. Bem, as linhas
estão terminando. Mas ainda tenho muito pra dizer.
Volto depois de amanhã, dia 23. Assinado: Diário,
ou como preferes, "Di"
DIA 22
Abri
hoje a página do dia 21 e encontrei-a preenchida.
Alguém entrou aqui, imitou a minha caligrafia, o
meu estilo, contou algumas antigas passagens e
assinou "Diário" Só pode ser brincadeira. De quem,
se vivo só? A arrumadeira que vem três vezes por
semana é semialfabetizada como a maioria do
"sistema" Não teria capacidade para escrever
aquilo. Realmente tive vontade de rir. Depois,
intrigaram-me algumas particularidades: os bailes,
o bufê da Colombo, os cigarros com filtro,
ex-namorados. Bem, para não perder tempo nem
página, vou logo resumir o dia 21. Fui ao jornal e
levei as duas crônicas para o caderno especial.
Preparei a matéria costumeira e sobrou tempo. O
chefe pediu-me para dar uma ajuda. O colega da
coluna do hor6scopo não aparecera. Caiu não sei de
qual altura. Ou quadratura. Até que aprecio
astrologia. Não entendo muito. Com o arquivo no
microcomputador foi fácil. Mas não resisti à
tentação de permutar alguns presságios. Acho que
fiz um bom trabalho. Favoreci a conjuntura de
todos os signos tanto no amor como nos negócios.
Quanto aos aspectos saúde e trabalho dividi meio a
meio a partir da balança, de modo inversamente
proporcionais os bons presságios laborais de uns e
os salutares de outros. Na conjuntura geral
agradei a todos. Lembro do meu avo aos 88 anos,
sentado numa cadeira de balanço e babando de rir
ao consultar o seu horóscopo diário: "hoje, sorte
no amor... mudanças no trabalho... viagens à
vista" Era um cínico. O astrólogo não. Meu avô.
Ariano.
Ontem fiz uma coisa de antigamente.
Fui ao cinema. Filme em preto e branco. Não me
lembro do título do filme. Entrei em meio à
sessão. Direção de um novato. Via-se logo pelos
excessos. Engraçado. Todo profissional começa
devagar, mansinho: jornalista, fotógrafo,
advogado, economista, engenheiro, arquiteto,
médico, diplomata - este não, diplomata, pois sim,
isso não é profissão, é masoquismo -, massagista
etc. Menos cineastas. Querem começar do fim. Acho
que é a marca olímpica do Orson Welles no Cidadão
Kane. Todo mundo quer melhorar, vencer, logo no
primeiro. A trilha sonora era razoável. Visíveis
os efeitos especiais. Extra tela, o ambiente
calmo. Bom. Tranquilo. Ar-condicionado à meia
força. Certa pacificidade no ar. A maioria da
assistência, adolescente. O filme - impróprio até
18 anos. Certa patifaria na tela. No foco da
câmera, além da poeira, aquela espécie de incenso.
Invisíveis efeitos especiais. Drogas leves.
Acabaram quase simultaneamente - a sessão, as
cessões e as sezões. Peguei um táxi e fui ao
Shopping Rio Sul. Comprei um CD clássico: Nikolai
Rimsky-Korsakov, na Russian Easter Overture op.
36. Cheguei a casa. Um quarto para uma. Acendi.
Bati na cama, não houve reclamações. Apaguei.
Amanhã resumo o dia 22. Assinado: "Gi"
(continua)
(10 de fevereiro/2014)
CooJornal nº 879.
Texto extraído do livro "O CLUBE DOS FEIOS
e outras
histórias extraordinárias" - 2ª edição - Editora
7 Letras)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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autor.
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