01/09/2022
Ano 25
Número 1.286

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Carlos Trigueiro




O CLUBE DOS FEIOS (5)

Carlos Trigueiro - CooJornal


"O tempo passou e o pensamento voou. Conheci muitas pessoas. No início foi excitante. Mundo novo, vida nova. Emoções desconhecidas. Prazeres até então ignorados. Mas passaram-se os meses, o primeiro ano, o segundo, o terceiro, e comecei a indagar-me para que lado havia crescido. Encontros, conversas, gente de todo tipo passava na loja. Minha condição de mulher solteira proporcionava vantagens. Além dos compromissos laborais, eu não tinha demarcações de tempo e espaço ou contratuais a me impedirem de viver como melhor admitisse. Nenhum parente, nenhum familiar num raio de centenas de quilômetros. Alguns novos conhecidos chegaram ao limiar da amizade. Todavia, instintivamente preservava minha intimidade e, sobretudo, o meu passado. Ninguém era absolutamente confiável. Aos vizinhos de moradia, limitava-me aos cumprimentos indispensáveis requeridos pela urbanidade. Aos companheiros de trabalho e empregados estendia-lhes o melhor profissionalismo de que era capaz. Mas nenhuma cessão de mim mesma.

"É verdade - muito me ajudou a manter pronta segurança no ir e vir, no descortino da personalidade, na firmeza dos propósitos imediatos, um segundo golpe de sorte. Comprando despretensiosamente um bilhete de Sweepstakes fui agraciada com prêmio montando valor expressivo para quem não tinha grandes aspirações de consumo material. Por isso, proporcionei-me deleites de ordem cultural. Frequentava teatro e ópera. Boa literatura aqueceu-me o espírito nas frias noites de inverno. Li clássicos escoceses, irlandeses e ingleses. Trilhei museus e bibliotecas. Ao cinema mudo, impus-me o cinema falado. Adquiri uma radiola e deliciei-me com a programação da BBC. Fiz pequenas excursões nas férias. Cruzei o canal e aventurei-me em terras francesas. Primeiro pelos vinhedos da região de Bourgogne, depois Paris. Saboreei os movimentos modernistas da pintura e escultura. Aprendi de vinhos e champagne - talvez por querer afrontar as recordações da Escócia, quando ainda meninota sentia o odor das misturas dos cereais e malte que iriam redundar nos uísques caseiros e na bebedeira dos irmãos e primos mais velhos. Atualizei-me política e ideologicamente. Comecei, como todos, a temer a ameaça nazista. Era evidente que a Europa iria mergulhar noutro conflito armado. E que os britânicos seriam chamados a defender o continente. Mal chegara de Paris, e a guerra explodiu. Veio com todos seus horrores, toda sua barbárie. Mas o que parecia interminável, um dia terminou. E a paz reinou outra vez, ao custo de milhões de vidas e sob o espectro de milhões de mortes.

"Decorreram quase 11 anos desde a noite em que fui atropelada. Minha vida mudara completamente. Era uma pessoa nova por fora e por dentro. Desfrutava de segurança e liberdade. Moderadamente elegante e discretamente bela. Tinha tudo, aparentemente, para prover-me daquilo que todos buscam - felicidade. Mesmo assim, um dia dei-me conta de que começava a entediar-me. Tudo fluía demasiadamente certo, era verdade e era bom, mas a vida precisava de um toque mágico, de uma vibração espontânea proveniente de calor humano. Eu tinha extirpado minhas raízes familiares. E fugido de meus liames de pura e desinteressada amizade - os membros do Clube. Comecei a pensar neles. No que estariam fazendo, embora soubesse que pouco teriam mudado. E a repassar na memória as sessões esotéricas das quintas-feiras. E a relembrar dos torneios de bridge, das conversas livres acompanhadas de chá. Das discussões - regadas a cerveja escura - quanto aos claros destinos do ser humano neste mundo de Deus e do diabo. Da notória clarividência que passávamos a exercer quando coesos no Clube, sob orientação dos iniciados. Das horas de meditação ou dos momentos de puro lazer. Da franqueza dos encontros - ninguém se preocupava com o que o outro fazia ou deixava de fazer fora do Clube. Cada um levava a vida que escolhera. Nenhum ali dentro aparentava uma pontinha sequer de insatisfação ou descontentamento. O conceito de 'felicidade' nunca era questionado, pois desde os primeiros momentos de vida em comum nos recintos do Clube, depreendia-se que, ao menos ali, e por alguns momentos que duravam quanto se quisesse, resgatávamos a nós mesmos de dentro do que pensávamos ser, e, por isso, e só por isso, sentíamos a felicidade exorbitando de cada poro individualmente.

"A maturidade parecia rondar-me. Os iniciados do Clube falavam disso: que a maturidade começa a nos rondar quando chega o momento, quando estamos suficientemente curtidos de mundanismo. Comecei a sentir falta do grupo, de meus vínculos com o Clube. Era isso, o Clube tinha se tornado a minha família - mas como era possível eu não ter percebido tal coisa? A vaidade que se apossara de minha individualidade, com a condição de haver-me tornado bela, bloqueou meus sentimentos legítimos. O racionalismo tinha afastado qualquer vínculo com o meu interior. Com a minha feiura, precisamente. Mas era bom, agora, confessar-me a mim mesma minhas fraquezas. Ter tido duas faces na vida era um fenômeno. Por causa das duas faces, provoquei e consegui ter duas vidas. E isso é possível, nesse mundo, ter duas vidas? Bem, foi o que tive, quase totalmente. A completa mudança de ambiente, de meio, de categoria social, mesmo intelectualizando-me, aculturando-me no que melhor me aprazia, dando vazão a certas tentações carnais e tudo o mais, no fim de tudo não tinham eliminado no fundo de minha alma, a mim mesma, aquele eu que brota com a gente quando nascemos e carregamos com naturalidade para o túmulo. Assim é que nunca consegui sonhar com a minha nova face. Em todos meus sonhos, minha fisionomia era a Srta. Milfford anterior, a da mulher rejeitada, esteticamente asquerosa. Em todos meus despertares ia diretamente aos espelhos, certificar-me de meu rosto verdadeiro, atual. Muitas vezes, fiquei na dúvida onde e qual era o pesadelo. Afinal de contas, o meu eu interior era o mesmo, aquele onde tinha nascido, crescido e vivido a mulher feia. Comecei realmente a sentir falta de um aperto de mão fraternal, ou maternal, ou paternal. Tão comum no Clube. Havia os mais velhos, os venerandos, os membros do Conselho, os Iniciados com "l" maiúsculo.

"Comecei a olhar-me de modo diferente no espelho. Qualquer questionamento começava a infiltrar-se no consciente, vindo das profundezas do eu. Queria falar comigo mesma no espelho. Como acontece com todo mundo. Lembrei-me da senhora chinesa estrábica: Sra. Shao Wing Wong. Ela dizia que a conversa diária do marido com o espelho, quando se barbeava, era um retrospecto da vida inteira, não abordava somente a programação para o dia de trabalho ou de lazer, embora fossem poucos minutos frente a frente com a imagem. Somente agora podia entender o que ela queria dizer. Somente agora podia compreender a viagem cósmica do eu de cada um de nós frente ao espelho, diariamente, mas que muito raro nos damos conta, porque o hábito elimina a perspectiva do tempo - tudo parece estar ocorrendo apenas frente ao espelho, e a longa viagem do eu interior não é percebível pelo consciente.

"Numa certa manhã, ao despertar, após sonhar toda a noite - era o que parecia - procurei falar comigo frente a imagem do espelho. Pela primeira vez, em todos aqueles anos, senti falta de mim mesma, como era no passado. Por incrível que me pareceu, senti falta da mulher feia que era, ou mais emotivamente, senti saudades de mim mesma. Iria começar uma nova fase em minha vida. Recuperar-me. Resgatar-me. Como era possível retornar às condições anteriores? Recuperar meu rosto original, minha fisionomia bruta e feia, mas que me pertencia, e só a mim pertencia. Armei-me de coragem, de determinação - que tinham sido sempre meu ponto forte - e escrevi ao Dr. Miguel de tal perguntando-lhe se era possível uma cirurgia para resgatar minha face anterior, minha autêntica pessoa. A resposta demorou meses. Os tempos de guerra haviam esfacelado os sistemas de correios. E o correio italiano nunca havia sido bom. Escrevi a mesma carta várias vezes e remeti-as, original e cópias, durante semanas, na esperança de que pelo menos um dos envelopes chegasse à Siena, onde vivia o notável cirurgião. Seis meses depois, chegou-me a resposta. Saudou-me cavalheirescamente e lembrava-se de meu caso com exatidão. Mas desencorajou-me de qualquer medida quanto ao que eu pretendia. Alegou, primeiramente, impossibilidades técnicas. Mas arrematou a mensagem de modo soberbo respaldando-se na ética profissional e na vontade divina. Enfim, o que a Srta. Mitfford pretendia era impossível.

"Foi quando me assaltou a ideia de ir ao Clube. Mas como? Tinham-se passado 11 anos e não 11 dias, nem 11 meses. Verdade que nunca havia deixado de contribuir todos aqueles anos. Enviava cheques pelo correio, anualmente. Somente no período da guerra, utilizei-me de mensageiros. Nunca mais tinha andado pelas cercanias de Westbourn Terrace. Soubera que durante os bombardeios nazistas, uma bomba arrasa-quarteirão cairá ali por perto. Porém, nunca mais tivera coragem de andar por ali. E agora como faria? Era preciso pensar bastante em como enfrentar tão desconfortável situação que eu mesma havia criado..."

(continua)
(Em O CLUBE DOS FEIOS & outras histórias extraordinárias- 2ª edição - Editora 7 Letras)

(RT, 06 de dezembro/2013)
CooJornal nº 809



 


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email carlostrigueiro28@gmail.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ




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