11/10/2013
Ano 17 - Número 861

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA

(
VIII a X)
 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

VIII

Confesso que pratiquei atos censuráveis - um pouco de tudo - virtual ou fisicamente, segundo exigências do momento. Embora o nepotismo fosse proibido, salvei-me de castigos graças a meus supostos laços familiares com um dos Sete Arcanjos. Não pesquisei linhagens ou parentescos; todavia, o arcanjo Zebaliel me parecia familiar. O que não me excluía de enfrentar suas rabugices.

Movimentando-se sobre tufos de nuvens prateadas, o arcanjo costumava agitar, nas mãos, o arco de um ancestral do violino. Não tinha bom ouvido - coitado, limitação que o constrangera a abandonar a orquestra de câmara celeste. Zebaliel jamais se livraria dessa frustração. Para piorar, a natureza dogmática da vida dos anjos não permitia sessões de apoio psicológico. Assim, os Céus não aventaram esse tipo de assistência ao macróbio nem mesmo quando as teorias de Freud estiveram no auge, inspirado por seu anjo da guarda - devo confessar - um cu-de-ferro sexomaníaco.

Zebaliel nunca abandonava o arco do instrumento musical. Talvez precisasse mesmo de algum apoio psicológico, apesar de quatro querubins que o ajudavam a equilibrar-se nas nuvens. Os querubins, impúberes, tinham o corpo rechonchudo, cabelos louros cacheados, rosto redondo. Aparentavam inocência, mas farejavam qualquer tipo de sacanagem nas cortes celestes. Pairavam no ar, movendo par de asas na cabeça e outro nos calcanhares, e, salvo estreita faixa de seda enrolada no tronco, sob os braços, estavam sempre despidos, vendo-se claramente que eram supersaudáveis.

Ouvia-se dizer - entre panos e nuvens quentes - que os querubins procediam de mosteiros e conventos, sob três condições concomitantes: concebidos fora das vistas, não longe dos costumes, embaixo dos hábitos. Como do ponto de vista canônico eram seres ilegítimos, teriam sido transformados em anjinhos para evitar maledicências nos céus e indecências na terra, ou vice-versa. Apesar disso ou por causa disso nunca se sabe o que passa ou não passa em cabeças aureoladas - não poucas eminências celestes sequiosas de mordomia incorporavam querubins às suas lides cotidianas.

Outra versão: querubins seriam filhos de anjos da guarda que copulavam com suas custodiadas, na clausura e frieza dos castelos medievais, durante as longas ausências dos maridos empenhados no calor das Cruzadas. Confirmo a versão. Eu mesmo tive de socorrer, para o bem e para o mal, duas rainhas, cinco princesas e dezessete infantas, pouco mais ou menos. Estimulado pela frescura, digo, frescor da carne humana abandonada pelos corajosos maridos e pretendentes, violei cintos de castidade valendo-me de formula alquímica precursora da revolução digital: meia polegada de sedução com dois dedos de magia durante sete minutos de fricção.

IX

Aleluia!

Ainda hoje, em dias festivos, o Céu fica todo cor-de-rosa. Estratos de nuvens são recheados com flocos de nuvens mais fofas - cúmulos - para acolchoar numa boa o bumbum dos anjos. Bem acomodados em ambientes virtuais com decoração minimalista, tagarelam sobre vivências, vaticínios ou amolações e, vez por outra, sobre o sacrifício de custodiar viventes em plagas desordenadas, onde o estado é tão invisível quanto Ele, mas a sociedade não está nem ai - se não deu praia, cai no samba e ri.

Daí para tagarelices teológicas e ideológicas é um pulo, digo, bater de asas, não obstante a roupa suja celeste seja toda lavada em casa, quero dizer, no Céu, com água da chuva invertida.

Na última vez em que participei de uma dessas reuniões, corria boato de que Ele ia estabelecer medida provisória para alavancar o mercado terreno. Algo assim como a fusão do Éden com paraísos fiscais. Acho que ainda não aconteceu, mas a informação era quente, vinha da divisão de escuta dos anjos mensageiros que, dizem, grampeiam até os celulares divinos.

Do ponto de vista gastronômico, eventos celestes surpreendem: nuvens de algodão-doce são - entre um fuminho e outro - servidas como hors-d'ceuvre, enquanto o sagrado cordeiro virtual é assado sobre faixas de arco-íris e regado com cordão-de-frade, pó de meteoritos e choro de lança-perfumes contrabandeados por anjos sacoleiros. E sempre se arranjam maneiras de esticar a animação dos encontros transformando-os em festinhas, pagodes, funks e variações. Não escondo que, depois de três ou quatro taças de Dom Pérignon camuflado entre outros spirits - que, como já disse, nenhum anjo é de ferro -, as reuniões ficam descontraídas e joga-se um bocado de conversa na imensidão.

Se ocorrem intervalos despejados, os Sete Arcanjos aproveitam para contar aos neófitos o repertorio anedótico dos cenóbios celestes. A maior parte das graças lato sensu abrange pedidos de indulgências encaminhados à diplomacia divina pelos pecadores terrenos arrependidos. Resulta que os novatos se molham de tanto rir (são aqueles chuviscos que pegam os humanos desprevenidos), pois estão cansados de saber que Ele é despótico, intransigente, ciumento e vingativo, fulmina o bom e o ruim, sem distinção, no tempo certo, quando bem quer e Lhe apraz.

X

Não nego que, vez ou outra nos corredores celestes, correm boatos sobre a antecipação do Dia do Juízo e, na mesma linha do zunzum, especulam que Ele vai decretar a desvalorização do pecado, pois este, todo mundo sabe, virou moeda corrente no mundo terreno, e está chegando a hora da verdade. Confesso que sobre isso já ouvi Arcanjo cochichando entre um e outro papo-de-anjo:

"Assim na Terra como no Céu."

Então, melhor confessar de uma vez que os anjos varrem a imundície do Céu para debaixo das nuvens. E como não só o mau exemplo, mas também todas as porcarias costumam vir de cima, está mais do que explicado por que os humanos pegam, pensando que é de Graça, tudo que não presta.

Anjo Mahlaliel

(11 de outubro/2013)
CooJornal nº 861


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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