VI
Nos últimos dois mil e quinhentos anos, constatei que nenhum gozo é tão
intenso no homem quanto embalar suas redes de neurônios sob as tendas do
pensamento. Esse egotismo é a sublimação do prazer, deleite superior a
qualquer manifestação visceral, erótica, ou sensorial, principalmente se
ocorre no terreno das artes. Daí que ao leitor ansioso é imprescindível
identificar o narrador de uma história, saber de onde ele vem, o que fez, não
fez, desfez, antes, durante, depois, para ficar ruminando hipóteses sobre o
íntimo de quem se lançou à escritura. Pois bem, se possível chamar de
curriculum vitae a litania a seguir, e segundo o critério multidisciplinar
dos Arcanjos, custodiei: profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros,
filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... E plebeus, bandidos, políticos,
jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, prostitutas,
sacerdotes, espiões, médicos, poetas, coronéis, escritores, grafiteiros,
funcionários públicos e os precursores dos blogueiros. Enfim, resumo que,
conhecido e reconhecido por Mahlaliel, impingiram-me crer que fui criado por
vontade d'Ele. Tenho dois mil quinhentos e setenta e oito anos, e como não dá
para perceber assim de longe, afirmo que anjos não envelhecem. São como sempre
foram, jovens ou anciãos, apesar de três a quatro dezenas de macróbios andarem
visitando o urologista celeste ultimamente. Bem assim, notei que vem
aumentando o número de anjos interessados em custodiar pesquisadores das
indústrias de produtos farmacêuticos e de cosméticos.
Convém ainda revelar minhas origens. É importante para os humanos um pedaçoo
de chão demarcado - mesmo ao custo (fajuto) de gritos tipo assim
"Independência ou morte" - e chamá-lo de Pátria! Ora, minha pátria era o Éter.
Sou (ou fui) legítimo cidadão do Cosmo. Como de resto também devem ser todos
aqueles que ainda sabem o Latim e, ao menos uma vez por dia, me ditam sobre as
inscrições de boas-vindas nos portões dos cemitérios (Stat sua cuique dies),
essas fronteiras tão antigas quanto malvistas e interpretadas.
Tudo bem, mas no mundo globalizado é difícil definir fronteira. Ou saber onde
começam e terminam as fronteiras. Goethe dizia que as fronteiras do homem são
as coisas. Acho que as fronteiras do homem são as coisas dos outros, digo as
mulheres dos outros. Portanto, vou manter minha condiçãoo de imponderável
enquanto puder.
Não à-toa tenho ouvido intensa voz interior: "Se cuida, Mahlaliel!" Ninguém
pense que estou louco. Tanto não estou louco que obedeço à voz. E me cuido.
Pedi permissão às associações protetoras de animais e aos grêmios defensores
dos direitos humanos para me vacinar contra o mal da vaca louca, gripe do
frango, febre amarela, a tal de dengue, e contra as doenças da vez, já que é
meio antipático falar em doenças da moda. Periodicamente, também me vacino
contra raiva, rancores, mágoas, inveja e ciúmes - males exclusivos das
espécies superiores. E, por via das dúvidas, me previno ainda contra aquelas
endemias étnicas que viram epidemias aéticas.
VII
Entro num assunto polêmico. Tendo em conta a hipocrisia dos parâmetros
terrenos, parecer vale mais do que ser. Dai tanta decepção quando as pessoas
se deixam envolver por aparências farfalhosas em detrimento de valores
autênticos. Nada obstante me cuido, sem apelar para processos de
lipoaspiração, peeling e artifícios do gênero. Minha aparência é das
melhores. Tenho pele branca, músculos torneados e cabelos cacheados da cor do
cobre. Tronco e membros rígidos. E era bem flexível o par de asas que
sustentava nas costas, sem nenhuma alusão ao marketing de companhias aéreas.
Meu rosto é sempre jovem, e nele se harmonizam o nariz helênico, pequenos
olhos vivazes e lábios carnudos, mas sem voluptuosidade - característica
incompatível com a boca de anjo da guarda. Minhas mãos são irrequietas,
expressivas, sugestivas, e os dedos, bem intencionados, digo
bem-proporcionados.
Afirmar que sou belo seria exagero; além disso, repudio qualquer tipo de
narcisismo. Descrevo-me porque a condição humana não pode prescindir do senso
estético, a rigor uma dissimulada manifestação da sensualidade. Meu aspecto
tem a ver com o pincel de Caravaggio. Confesso que eu mesmo misturei alguns
matizes na paleta do pintor. E influenciei-o nos traços da tela São Mateus
e o anjo. Apareci-lhe em sonhos, a fim de que memorizasse minhas feições e
aparente boa índole. Meus trajes: túnica acetinada de cor sépia, traspassada
sobre o ombro direito, cobrindo do tronco aos joelhos. Calço chancas feitas
com o couro de cordeiros sacrificados em Sua intenção.
No entanto, o rigor canônico obrigou Caravaggio a pintar uma segunda tela
igualzinha à primeira, alterando apenas a expressão de São Mateus que, segundo
os censores, parecia assustado com a presença do anjo. No juízo dos críticos
de então - Ô raça! - semblante temeroso não condizia com a expressão de santo.
Mais tarde, graças ao vigor de minhas asas, num momento de distração do seu
anjo da guarda, um censor apareceu boiando numa ribeira do Arno, em Florença.
Ninguém ficou sabendo quem o empurrou do alto da Ponte Vecchio, pois
confessar crimes aos superiores implicava rigorosa inspeção no passado,
presente e futuro do confesso. Vali-me da experiência e fiquei na moita, pois
sabia que o tempo celeste não era (e não é) subordinado a qualquer critério de
controle ou medida, daí os arcanjos procrastinarem tomada de confissões,
inspeção de feitos e punição de malfeitos.
Mas paragens celestes não estão livres de regras com essa e aquela exceção.
Exemplo contundente era o arcanjo Zebaliel inspecionar suas legiões sempre que
lhe dava na telha. Óbvio que nos bastidores nublosos havia burburinho sobre
maus humores e caduquices do arcanjo macróbio. Em verdade, Zebaliel fora anjo
da guarda de Matusalém. Especulavam que o patriarca bíblico vivera novecentos
e sessenta e nove anos, só de pirraça, para manter o arcanjo alerta e dar-lhe
alguma ocupação digna.
Noutros tempos, os humanos encontravam os seus anjos da guarda com maior
frequência. E vice-versa. A Bíblia menciona que alguns anjos foram punidos
porque se deitavam com mulheres de patriarcas ou de seus descendentes. E
também não esconde que, no começo de tudo, havia incestos.
(continua)
(04 de outubro/2013)
CooJornal nº 860
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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