04/10/2013
Ano 17 - Número 860

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA

(
VI E vII)
 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

VI

Nos últimos dois mil e quinhentos anos, constatei que nenhum gozo é tão intenso no homem quanto embalar suas redes de neurônios sob as tendas do pensamento. Esse egotismo é a sublimação do prazer, deleite superior a qualquer manifestação visceral, erótica, ou sensorial, principalmente se ocorre no terreno das artes. Daí que ao leitor ansioso é imprescindível identificar o narrador de uma história, saber de onde ele vem, o que fez, não fez, desfez, antes, durante, depois, para ficar ruminando hipóteses sobre o íntimo de quem se lançou à escritura. Pois bem, se possível chamar de curriculum vitae a litania a seguir, e segundo o critério multidisciplinar dos Arcanjos, custodiei: profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... E plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, prostitutas, sacerdotes, espiões, médicos, poetas, coronéis, escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros. Enfim, resumo que, conhecido e reconhecido por Mahlaliel, impingiram-me crer que fui criado por vontade d'Ele. Tenho dois mil quinhentos e setenta e oito anos, e como não dá para perceber assim de longe, afirmo que anjos não envelhecem. São como sempre foram, jovens ou anciãos, apesar de três a quatro dezenas de macróbios andarem visitando o urologista celeste ultimamente. Bem assim, notei que vem aumentando o número de anjos interessados em custodiar pesquisadores das indústrias de produtos farmacêuticos e de cosméticos.

Convém ainda revelar minhas origens. É importante para os humanos um pedaçoo de chão demarcado - mesmo ao custo (fajuto) de gritos tipo assim "Independência ou morte" - e chamá-lo de Pátria! Ora, minha pátria era o Éter. Sou (ou fui) legítimo cidadão do Cosmo. Como de resto também devem ser todos aqueles que ainda sabem o Latim e, ao menos uma vez por dia, me ditam sobre as inscrições de boas-vindas nos portões dos cemitérios (Stat sua cuique dies), essas fronteiras tão antigas quanto malvistas e interpretadas.

Tudo bem, mas no mundo globalizado é difícil definir fronteira. Ou saber onde começam e terminam as fronteiras. Goethe dizia que as fronteiras do homem são as coisas. Acho que as fronteiras do homem são as coisas dos outros, digo as mulheres dos outros. Portanto, vou manter minha condiçãoo de imponderável enquanto puder.

Não à-toa tenho ouvido intensa voz interior: "Se cuida, Mahlaliel!" Ninguém pense que estou louco. Tanto não estou louco que obedeço à voz. E me cuido. Pedi permissão às associações protetoras de animais e aos grêmios defensores dos direitos humanos para me vacinar contra o mal da vaca louca, gripe do frango, febre amarela, a tal de dengue, e contra as doenças da vez, já que é meio antipático falar em doenças da moda. Periodicamente, também me vacino contra raiva, rancores, mágoas, inveja e ciúmes - males exclusivos das espécies superiores. E, por via das dúvidas, me previno ainda contra aquelas endemias étnicas que viram epidemias aéticas.

VII

Entro num assunto polêmico. Tendo em conta a hipocrisia dos parâmetros terrenos, parecer vale mais do que ser. Dai tanta decepção quando as pessoas se deixam envolver por aparências farfalhosas em detrimento de valores autênticos. Nada obstante me cuido, sem apelar para processos de lipoaspiração, peeling e artifícios do gênero. Minha aparência é das melhores. Tenho pele branca, músculos torneados e cabelos cacheados da cor do cobre. Tronco e membros rígidos. E era bem flexível o par de asas que sustentava nas costas, sem nenhuma alusão ao marketing de companhias aéreas. Meu rosto é sempre jovem, e nele se harmonizam o nariz helênico, pequenos olhos vivazes e lábios carnudos, mas sem voluptuosidade - característica incompatível com a boca de anjo da guarda. Minhas mãos são irrequietas, expressivas, sugestivas, e os dedos, bem intencionados, digo bem-proporcionados.

Afirmar que sou belo seria exagero; além disso, repudio qualquer tipo de narcisismo. Descrevo-me porque a condição humana não pode prescindir do senso estético, a rigor uma dissimulada manifestação da sensualidade. Meu aspecto tem a ver com o pincel de Caravaggio. Confesso que eu mesmo misturei alguns matizes na paleta do pintor. E influenciei-o nos traços da tela São Mateus e o anjo. Apareci-lhe em sonhos, a fim de que memorizasse minhas feições e aparente boa índole. Meus trajes: túnica acetinada de cor sépia, traspassada sobre o ombro direito, cobrindo do tronco aos joelhos. Calço chancas feitas com o couro de cordeiros sacrificados em Sua intenção.

No entanto, o rigor canônico obrigou Caravaggio a pintar uma segunda tela igualzinha à primeira, alterando apenas a expressão de São Mateus que, segundo os censores, parecia assustado com a presença do anjo. No juízo dos críticos de então - Ô raça! - semblante temeroso não condizia com a expressão de santo.

Mais tarde, graças ao vigor de minhas asas, num momento de distração do seu anjo da guarda, um censor apareceu boiando numa ribeira do Arno, em Florença. Ninguém ficou sabendo quem o empurrou do alto da Ponte Vecchio, pois confessar crimes aos superiores implicava rigorosa inspeção no passado, presente e futuro do confesso. Vali-me da experiência e fiquei na moita, pois sabia que o tempo celeste não era (e não é) subordinado a qualquer critério de controle ou medida, daí os arcanjos procrastinarem tomada de confissões, inspeção de feitos e punição de malfeitos.

Mas paragens celestes não estão livres de regras com essa e aquela exceção. Exemplo contundente era o arcanjo Zebaliel inspecionar suas legiões sempre que lhe dava na telha. Óbvio que nos bastidores nublosos havia burburinho sobre maus humores e caduquices do arcanjo macróbio. Em verdade, Zebaliel fora anjo da guarda de Matusalém. Especulavam que o patriarca bíblico vivera novecentos e sessenta e nove anos, só de pirraça, para manter o arcanjo alerta e dar-lhe alguma ocupação digna.

Noutros tempos, os humanos encontravam os seus anjos da guarda com maior frequência. E vice-versa. A Bíblia menciona que alguns anjos foram punidos porque se deitavam com mulheres de patriarcas ou de seus descendentes. E também não esconde que, no começo de tudo, havia incestos.

(continua)

(04 de outubro/2013)
CooJornal nº 860


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

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