27/09/2013
Ano 16 - Número 859

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Carlos Trigueiro


CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA

(IV E v)
 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

IV

Ressalvo que o ato de contar historias é invenção do homem. Somente o gênero humano é capaz de falsear e subverter o uso da língua de tudo quanto é maneira, desde promessas de políticos em campanha, ao tropismo boca a boca nas imagens de telenovelas - delito que uma parcela das elites comete, outra propaga, outra custeia, outra acoberta. Delito em cadeia, como se vê. Mas é só trocadilho, ninguém vai preso.

Também resguardo minha semântica imprecisa sob a desculpa de que anjos são franco-atiradores em matéria literária. Admito excessos ao narrar episódios mundanos sob a elástica percepção dos anjos, pois muralhas culturais enclausuram a noção humana de perspectiva e simultaneidade dos fatos. Além disso, a condição humana é paradoxal: exprime regozijo e sofrimento simultâneos na ânsia de materializar o tempo, transformá-lo em produto de consumo e pegá-lo na prateleira da vez. Ora, o tempo é intrínseco a todas as coisas, mortais e imortais. É inútil a ansiedade do homem visando transpor as barbacãs do tempo, pois a vida humana ocorre exclusivamente numa penitenciária sensorial.

Para que estes relatos não criem expectativas de reavaliar dogmas como, por exemplo, a sexualidade dos anjos, afirmo que as linhagens angelicais são costuradas, rasgadas e cerzidas sob mistério. Antes que germinem hipóteses licenciosas a respeito, advirto: as Escrituras não deixam incertezas sobre o assunto. Basta interpretar os textos com uma dose de picardia canônica e sem as lentes ray-ban da hipocrisia eclesiástica.

Claro que o tema se modificou na sociedade industrial. Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo, anjo impotente, anjo frigido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais - nada a ver com preferências. Porém, modismos não me afetam. Jamais duvidei do significado de minhas ereções. O que não implica saia por aí alardeando fazer isso e aquilo com um falo virtual. Todos deviam saber que, sob circunstâncias apelativas, especialmente marketing de religiões fundamentalistas, falos virtuais podem adquirir excepcional rigidez, transformando-se em cajado, bordão, pau puro - gracioso eufemismo de pau duro.

Assumo que estendi raios de tolerância e permissividade em causa própria. Sem absurdos. Nada alem de brinco descartável no lobo da orelha, de discreto piercing nasal e tatuagem geminada de raro lepidóptero nas partes globosas do dorso inferior. E, claro, de vez em vez, a travessura de fazer um fuminho em busca de outras névoas e esferas, procedimento mais supérfluo que escandaloso, pois anjos sendo ou não sendo nefelibatas já vivem nas alturas.

Minha voz é grave, trovejante, característica que me trouxe percalços. Sucedeu que os arcanjos, para atender à intensa programação dos eventos celestiais, cismaram de reeducar minha voz ora como barítono, ora como tenor. Visto que o Canto Orfeônico era matéria obrigatória na formação angelical, tive de violentar minha natureza inúmeras vezes. Mesmo no Céu, digo entre entes celestes, tudo tem limite! Certo dia, não só desafinei de propósito como também falseei quinze vezes um estribilho. Foi na coroação de Carlos Magno, rei dos francos, mas croata de nascimento, no Natal do ano 800. Conclusão: expulsaram-me do coral formado por anjos e serafins. Em vez de protestar, fiquei satisfeito. Nada me aborrecia tanto como hinos exaltando feitos de guerra.

De resto, cansei-me de trombetas, pífaros, flautas, harpas, sambucas e liras. Somente retornaria à música séculos depois. Obra do acaso. Traído e atraído pela melodia de guitarras elétricas. Lá: num pub londrino. Eis no que deu, substituir o anjo da guarda dos Beatles num fim de semana sem sol. Suspeito que, no juízo dos arcanjos provectos, foi essa extravagância musical que me legou o estigma de enfant terrible, e não uma ou outra prevaricação cometida, sem dó maior, ao me deixar seduzir por ninfas disfarçadas de querubins. Ah, disfarces! Todos têm seu preço.


V

Confesso a pretensão dos meus escritos. Quero, sem distinção de etnias, abalar crenças e descrenças. Só assim minha indignação reboará como artefato terrorista em ponto turístico, estação de metrô, ou prédio de embaixada. Não vou anunciar a antecipação do Apocalipse, evento já previsto por leitores terrenos de bom senso, imunes tanto ao febrão neoliberal, quanto ao socialismo de plantão - e aos misticismos industrializados -, e que perceberam a irreversível predação do entorno. Tudo claro. Ciência e Internet estão aí a provar com requintes tecnológicos e animação colorida: durante milhões de anos, a espécie humana não fez mínima falta. O processo de erosão da Terra era natural. Com o homem surgiu a erosão inteligente e lucrativa! Nada lhe escapa. Nem o vácuo. Nem o tempo. O homem conseguiu acelerar o futuro, mas sepultou a esperança de chegar lá.

A propósito, cansei-me de ouvir mentiras nos votos esperançosos de Ano-Novo. Não suporto a mensagem fraudulenta dos réveillons, ano após ano. Estando a hipocrisia das gentes em permanente reciprocidade, frustrei-me com a serventia de guardar aqueles que não têm salvação, aliás, a maioria.

Provavelmente vou contrariar frequentadores de livros e catálogos, bem como internautas que investigam origens, tipos, legiões, falanges, auréolas, mesteres, plumas, asas e qualquer referência aos anjos. Garanto: será estorvo passageiro. Tardará o tempo que a curiosidade humana dedica às vitrinas de um shopping visitado pela trigésima nona vez. De fato, neste mundo de desencantos, até anjos persas e babilônicos estão sendo retirados de suas tumbas para servir de tabuas de salvação, pois a criatura à semelhança e imagem d'Ele, como rezam as Escrituras, está em extinção. Dentre mil e uma desgraças, sobressai o flagelo da TV que nulifica o indivíduo e aniquila a espécie - chucha os olhos do homem de suas órbitas, prostra-o com animação colorida, marketing premiado, ou com a enganosa interatividade dos reality shows. Decerto é compreensível o enorme interesse das pessoas por anjos, afins e assemelhados, visto a pedreira que é enfrentar o mundo sem proteção de asas plumosas, mãos invisíveis, auras de mansidão. De todo modo, será esforço inócuo - melhor abrir o jogo. No mundo terreno, fornicar o próximo é compulsão diuturna em todos os sentidos - mesmo virtualmente, com o mouse.

Quanto ao recurso literário (maneiro) para expor estas confissões, em vez de usar o cinema ou mesmo a internet, a escolha não foi por romantismo. Na liturgia dos anjos, o livro permanece como o sacrário natural do conhecimento. O exemplo a seguir pode levantar suspeita, mas quando os Arcanjos me desornaram, recolhendo-me asas, vestes, halo, chanças, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate, deixaram-me meus manuscritos e plumas. Tal generosidade (estudada) evitou conflitos que poderiam lhes atormentar a consciência de escribas celestes. Consciência que, logo se vê, eu viria perder devido às minhas relações promíscuas e inevitáveis com o gênero humano.

(continua)

(27 de setembro/2013)
CooJornal nº 859


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com


Direitos Reservados