IV
Ressalvo que o ato de contar historias é invenção do homem. Somente o gênero
humano é capaz de falsear e subverter o uso da língua de tudo quanto é
maneira, desde promessas de políticos em campanha, ao tropismo boca a boca nas
imagens de telenovelas - delito que uma parcela das elites comete, outra
propaga, outra custeia, outra acoberta. Delito em cadeia, como se vê. Mas é só
trocadilho, ninguém vai preso.
Também resguardo minha semântica imprecisa sob a desculpa de que anjos são
franco-atiradores em matéria literária. Admito excessos ao narrar episódios
mundanos sob a elástica percepção dos anjos, pois muralhas culturais
enclausuram a noção humana de perspectiva e simultaneidade dos fatos. Além
disso, a condição humana é paradoxal: exprime regozijo e sofrimento
simultâneos na ânsia de materializar o tempo, transformá-lo em produto de
consumo e pegá-lo na prateleira da vez. Ora, o tempo é intrínseco a todas as
coisas, mortais e imortais. É inútil a ansiedade do homem visando transpor as
barbacãs do tempo, pois a vida humana ocorre exclusivamente numa penitenciária
sensorial.
Para que estes relatos não criem expectativas de reavaliar dogmas como, por
exemplo, a sexualidade dos anjos, afirmo que as linhagens angelicais são
costuradas, rasgadas e cerzidas sob mistério. Antes que germinem hipóteses
licenciosas a respeito, advirto: as Escrituras não deixam incertezas sobre o
assunto. Basta interpretar os textos com uma dose de picardia canônica e sem
as lentes ray-ban da hipocrisia eclesiástica.
Claro que o tema se modificou na sociedade industrial. Hoje tem anjo macho,
anjo fêmeo, anjo impotente, anjo frigido, anjo esterilizado, anjo siliconado,
anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais - nada a
ver com preferências. Porém, modismos não me afetam. Jamais duvidei do
significado de minhas ereções. O que não implica saia por aí alardeando fazer
isso e aquilo com um falo virtual. Todos deviam saber que, sob circunstâncias
apelativas, especialmente marketing de religiões fundamentalistas, falos
virtuais podem adquirir excepcional rigidez, transformando-se em cajado,
bordão, pau puro - gracioso eufemismo de pau duro.
Assumo que estendi raios de tolerância e permissividade em causa própria. Sem
absurdos. Nada alem de brinco descartável no lobo da orelha, de discreto
piercing nasal e tatuagem geminada de raro lepidóptero nas partes globosas
do dorso inferior. E, claro, de vez em vez, a travessura de fazer um fuminho
em busca de outras névoas e esferas, procedimento mais supérfluo que
escandaloso, pois anjos sendo ou não sendo nefelibatas já vivem nas alturas.
Minha voz é grave, trovejante, característica que me trouxe percalços. Sucedeu
que os arcanjos, para atender à intensa programação dos eventos celestiais,
cismaram de reeducar minha voz ora como barítono, ora como tenor. Visto que o
Canto Orfeônico era matéria obrigatória na formação angelical, tive de
violentar minha natureza inúmeras vezes. Mesmo no Céu, digo entre entes
celestes, tudo tem limite! Certo dia, não só desafinei de propósito como
também falseei quinze vezes um estribilho. Foi na coroação de Carlos Magno,
rei dos francos, mas croata de nascimento, no Natal do ano 800. Conclusão:
expulsaram-me do coral formado por anjos e serafins. Em vez de protestar,
fiquei satisfeito. Nada me aborrecia tanto como hinos exaltando feitos de
guerra.
De resto, cansei-me de trombetas, pífaros, flautas, harpas, sambucas e liras.
Somente retornaria à música séculos depois. Obra do acaso. Traído e atraído
pela melodia de guitarras elétricas. Lá: num pub londrino. Eis no que
deu, substituir o anjo da guarda dos Beatles num fim de semana sem sol.
Suspeito que, no juízo dos arcanjos provectos, foi essa extravagância musical
que me legou o estigma de enfant terrible, e não uma ou outra
prevaricação cometida, sem dó maior, ao me deixar seduzir por ninfas
disfarçadas de querubins. Ah, disfarces! Todos têm seu preço.
V
Confesso a pretensão dos meus escritos. Quero, sem distinção de etnias, abalar
crenças e descrenças. Só assim minha indignação reboará como artefato
terrorista em ponto turístico, estação de metrô, ou prédio de embaixada. Não
vou anunciar a antecipação do Apocalipse, evento já previsto por leitores
terrenos de bom senso, imunes tanto ao febrão neoliberal, quanto ao socialismo
de plantão - e aos misticismos industrializados -, e que perceberam a
irreversível predação do entorno. Tudo claro. Ciência e Internet estão aí a
provar com requintes tecnológicos e animação colorida: durante milhões de
anos, a espécie humana não fez mínima falta. O processo de erosão da Terra era
natural. Com o homem surgiu a erosão inteligente e lucrativa! Nada lhe escapa.
Nem o vácuo. Nem o tempo. O homem conseguiu acelerar o futuro, mas sepultou a
esperança de chegar lá.
A propósito, cansei-me de ouvir mentiras nos votos esperançosos de Ano-Novo.
Não suporto a mensagem fraudulenta dos réveillons, ano após ano.
Estando a hipocrisia das gentes em permanente reciprocidade, frustrei-me com a
serventia de guardar aqueles que não têm salvação, aliás, a maioria.
Provavelmente vou contrariar frequentadores de livros e catálogos, bem como
internautas que investigam origens, tipos, legiões, falanges, auréolas,
mesteres, plumas, asas e qualquer referência aos anjos. Garanto: será estorvo
passageiro. Tardará o tempo que a curiosidade humana dedica às vitrinas de um
shopping visitado pela trigésima nona vez. De fato, neste mundo de
desencantos, até anjos persas e babilônicos estão sendo retirados de suas
tumbas para servir de tabuas de salvação, pois a criatura à semelhança e
imagem d'Ele, como rezam as Escrituras, está em extinção. Dentre mil e uma
desgraças, sobressai o flagelo da TV que nulifica o indivíduo e aniquila a
espécie - chucha os olhos do homem de suas órbitas, prostra-o com animação
colorida, marketing premiado, ou com a enganosa interatividade dos reality
shows. Decerto é compreensível o enorme interesse das pessoas por anjos,
afins e assemelhados, visto a pedreira que é enfrentar o mundo sem proteção de
asas plumosas, mãos invisíveis, auras de mansidão. De todo modo, será esforço
inócuo - melhor abrir o jogo. No mundo terreno, fornicar o próximo é compulsão
diuturna em todos os sentidos - mesmo virtualmente, com o mouse.
Quanto ao recurso literário (maneiro) para expor estas confissões, em vez de
usar o cinema ou mesmo a internet, a escolha não foi por romantismo. Na
liturgia dos anjos, o livro permanece como o sacrário natural do conhecimento.
O exemplo a seguir pode levantar suspeita, mas quando os Arcanjos me
desornaram, recolhendo-me asas, vestes, halo, chanças, alabarda, sambuca e
aquelas nuvenzinhas precursoras do skate, deixaram-me meus manuscritos
e plumas. Tal generosidade (estudada) evitou conflitos que poderiam lhes
atormentar a consciência de escribas celestes. Consciência que, logo se vê, eu
viria perder devido às minhas relações promíscuas e inevitáveis com o gênero
humano.
(continua)
(27 de setembro/2013)
CooJornal nº 859
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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