I
Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes. Aliás,
porque solicitei ao
arcanjo de plantão, dezenas, centenas de vezes, um encontro com Ele - o
Onisciente, ou
Architecto, como alguns preferem. Só queria saber por que Ele permite tanta
desigualdade entre os
homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem oscilações de
equidade, numa existência digna, do início ao fim. Também queria perguntar-Lhe olho no olho:
por que entre os
homens não existe nada mais distante que o próximo?
Mas o encontro me foi negado durante séculos. "Quem duvida dos Seus
desígnios não merece ir à Sua presença" era a desculpa que sempre me davam.
"Mandou-O para aquele lugar",
pensará o leitor
impaciente, sequioso por dissensões, rompimentos, querelas. Mas não o fiz. Não
teria sentido
contrariar voz uníssona: "Ele está em toda parte." Continuei aguardando um
encontro, mas séculos
se esfumaram. Resultou que nunca O vi.
Então, decidi raciocinar, em vez de acreditar cegamente em tudo o que me
haviam ensinado que
existe. Ou no que sempre existiu. Concluí: impingiram-me crer não só que Ele
existe, mas também na necessidade de que Ele exista. E se perpetue. Ora,
acreditar na idéia de
que alguém, há bilhões de anos, tenha bancado, incógnito, sozinho, a
construção do Universo
sem levar nenhuma
vantagem, já é suficiente para desconfiar do que estamos fazendo aqui. E
aparentemente de modo
gratuito.
Por isso questionei não só a Sua existência, mas também tudo em volta.
Constatei que a versão
dada à origem do Universo e a sua parafernália infinita era maior que a
verdade. Não cheguei a me
decepcionar. Já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio
caminho entre a
verdade e a versão. Ou, no mote cibernético, entre o real e o virtual.
II
Tornei-me um anjo da guarda dissidente. Meus pares foram menos
sutis, tacharam-me
de rebelde, devasso e inconfidente. Os conservadores acusaram-me de traição e
hediondez. Os
liberais crêem que ensandeci. Em verdade, minha loucura reside no fato de que
constituo ameaça
aos dogmas e oligarquias celestes.
Decerto ninguém avalia quanto foi doloroso fazer estas confissões, violar
tradições milenares,
renegar códigos e doutrinas, transgredir costumes, imbuir-me de nova ordem
interior. E não menos
conflitante, apesar de aparente cinismo: abrir mão de trajes, acessórios,
espaços, regalias,
imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas de
anjo da guarda.
Minha mudança de comportamento gerou polêmica e dissabores nas paragens
etéreas. Houve
conseqüências. Baniram-me do convívio com a parentalha de arcanjos, serafins,
querubins e
assemelhados. Com muita força de vontade - e algum apadrinhamento, porque
nenhum anjo e de ferro
- consegui
manter meu estado de imponderável, embora minha indignaçãoo seja cada vez mais
visível,
principalmente no papel.
Anteriormente, meus escritos eram apenas registros mais ou menos desordenados
de experiências vividas. Não multo longe de um fabulário. No escoar do tempo e amontoar das
dúvidas, os relatos
foram se transformando e assumiram a forma de livro - ocorrência já no mundo
terreno. Daí tive de
me submeter aos regimentos dos direitos autorais que, segundo me explicaram,
servem para proteger
a obra de alguém contra obras de outrem.
Não sei como desconfiaram que permeei este livro com escritos de vários
autores. Claro que mexi
nos textos agregados. Não em todos. Alguns parecem levar a impressão digital
do autor, sendo impossível tirar ou pôr uma vírgula porque o estilo reage.
Assim, tentei
adotar resultante de
estilos literários do Céu e da Terra. Trabalho em vão. Os fantasmas de cada
escritor interferem -
escrever é um terço de confissão, outro de penitência, outro mais de
resistência; o resto é indignação.
Nada de furto nos meus escritos, tampouco plágio. As histórias de que me vali
(não digo aproveitei porque esse verbo dá idéia de cargo público) foram refugadas por
seus autores.
Confesso que extrapolei ao espionar escritores de primeira linha. Mas
enriquecer minha escritura
com idéias alheias passou de ambição a obsessão.
III
A fim de que o leitor não se apresse a julgar meu caráter, sugiro a leitura
deste livro
exclusivamente nos recantos nobres da casa. Do alto da experiência de anjo da
guarda, conheço
gente fina que só gosta de ler onde se faz outra coisa.
(continua)
(20 de setembro/2013)
CooJornal nº 858
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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