(Publicado
no Jornal do Brasil - 13.10.1987 - Rio de Janeiro)
1. Quando o presidente Ronald Reagan confundiu-nos com nossos irmãos
bolivianos, o episódio, além de enriquecer o anedotário diplomático, provocou
um beicinho no orgulho nacional e relançou à polêmica o pouco caso dos
norte-americanos sobre o que se passa ao sul do Rio Grande.
2. Hoje, diante da cognominada transição brasileira, com fortes matizes do
caos político e econômico que caracterizaram a Bolívia tanto tempo, o
anedotário carioca bem poderia resgatar a imagem de Reagan, reconhecendo-o
como "homem de visão", capaz de enxergar não só além do Rio Grande, mas também
do Rio Guaporé - e constatar (sorry!) que por estas plagas do Cone Sul não ha
grandes diferenças.
3. À parte esses meandros anedóticos, a transição brasileira implica desafio
que transcende puramente a reestruturação dos sistemas político e econômico,
aspectos suscetíveis aos olhos do Poder, ainda que a propaganda do governo
apregoe "tudo pelo social".
4. E necessário chamar a atenção para um fenômeno surgido na célula da
sociedade durante os últimos anos e que vem demonstrando o seu potencial
desintegrador. Sua ação é sistêmica e escalar. Agride indiscriminada e
impunemente todos os grupos sociais, todos os cidadãos.
5. Em verdade, cessados os efeitos anestésicos do milagre econômico, da
euforia da redemocratização e do aumento da permissividade nos costumes, a
sociedade brasileira parece imergir em uma crise de anomia - na acepção
sociológica de Durkheim - ou seja, em um processo de desintegração das normas
sociais.
6. Qualquer cidadão comum pode constatar que estamos atravessando um período
de enfraquecimento de valores em todos os níveis, de tal sorte que as normas
sociais se deterioram, subvertem e desintegram.
7. O impacto desse tipo de fissão em cadeia atinge o padrão, a regra, a lei e
o costume. Refaz a ética e desfaz a moral. O que não se altera caduca ou
fenece. O anômalo torna-se normal. 0 permanente rareia enquanto o transitório
fica. Institucionaliza-se a transição.
8. Sob a égide da transição desmedulam-se a ordem e a autoridade, e surge uma
moral imprecisa, inconsciente sem condições de estabelecer uma disciplina
perene, porque as manifestações da vida coletiva vem sendoo despojadas da ação
moderadora da regra.
9. Nessa devastadora anomia, nessa desestruturação de normas e valores é que
se instala e pulula a impunidade Os exemplos estão em toda parte e ao alcance
das mãos: na mão que apedreja o presidente da República; na que se compromete
em campanhas eleitorais; na que empunha pistola clandestina para a guerrilha
urbana do dia-a-dia, na que vasculha o bolso do contribuinte ao decretar e
desdecretar impostos; na que cobra ágio ao consumidor ou na que corrompe as
concorrências públicas. Naturalmente que nos segmentos econômicos da
sociedade, onde a moral é mais flexível, a anomia tende a se propagar com
maior celeridade.
10. Quando impera a anomia, qualquer ponderação de valores é caótica, e uma
febril compulsão tende a germinar na vontade individual e com anuência
coletiva. Tanto faz burlar uma fila, desrespeitar um semáforo, inadimplir
crédito interno ou externo, descumprir padrões industriais de qualidade,
justiçar na urbe ou no campo, leiloar verbas e cargos públicos. A anomia é uma
patologia social que atinge o corpo e a alma da sociedade.
11. A gravidade excepcional desse estado de coisas é que um processo de
contínuo desregramento plasma a aparência pluralista das liberdades
democráticas, mas na realidade superalimenta o embrião das áspides
totalitárias, sempre dissimuladas nas sociedades sem maturidade política ou em
processo de desorganização econômica.
12. Segundo Durkheim, para que a anomia tenha fim é necessário que exista ou
se forme um grupo onde se possa constituir o sistema de regras que faz falta.
Não houvesse o sociólogo alsaciano apresentado essas ideias no século
dezenove, diríamos que os seus ensaios sobre a anomia inspiravam-se na
situação brasileira dos nossos dias, onde temos até uma assembleia
constituinte que poderia ser o grupo salvador.
13. No caso do momento brasileiro, não é que faça falta um novo sistema de
regras, como muitos querem crer, para se impor uma Constituição mágica, capaz
de substituir o empírico pelo formal, a realidade pelo modelo, a pobreza pelo
desenvolvimento. Todos sabemos qual o destino da nossa miríade de leis,
códigos e regulamentos, desde a mais elementar regra de trânsito às linhas
mestras da carta magna.
14. Sob o ângulo da moral econômica, não há dúvida de que o maior problema da
atualidade brasileira é a dívida externa, eis que ameaça cercear a sociedade
como um todo. Como as repercussões da anomia ultrapassam as nossas fronteiras,
os banqueiros credores preferiram esperar a implementaçãoo de um novo sistema
de regras e governo no país, para poderem definir a renegociação da dívida.
15. Essa atitude leva-nos à reflexão de que a pujança do sistema financeiro
internacional foi construída não só com capitais, mas sobretudo com outro
componente básico: um sistema de regras - antítese da anomia - embora se saiba
que a moral econômica regente tenha sido flexionada em via de mão única.
16. Durkheim entendia a sociedade como um conjunto de ideais alimentados por
indivíduos que fazem parte dela. Esses ideais seriam movidos por uma potência
moral capaz de impor respeito à regra. No Brasil, não é um novo sistema de
regras que faz tanta falta, mas sim uma supremacia moral que discipline a
liberdade individual e a ordem coletiva. Essa supremacia moral é que poderia
ser o legítimo antídoto para a anomia brasileira, mesmo tendo de admitir que,
nas estruturas capitalistas como a nossa, sem liberdade econômica (poder
aquisitivo), tanto o indivíduo como a sociedade possuem apenas liberdade
nominal.
(Em MEU BRECHÓ DE
TEXTOS–
Ed. Imprimatur – 2012 – Rio de Janeiro/RJ)
(30 de agosto/2013)
CooJornal nº 855
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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