30/08/2013
Ano 16 - Número 855

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



Durkheim e a anomia brasileira
 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

 (Publicado no Jornal do Brasil - 13.10.1987 - Rio de Janeiro)


1. Quando o presidente Ronald Reagan confundiu-nos com nossos irmãos bolivianos, o episódio, além de enriquecer o anedotário diplomático, provocou um beicinho no orgulho nacional e relançou à polêmica o pouco caso dos norte-americanos sobre o que se passa ao sul do Rio Grande.

2. Hoje, diante da cognominada transição brasileira, com fortes matizes do caos político e econômico que caracterizaram a Bolívia tanto tempo, o anedotário carioca bem poderia resgatar a imagem de Reagan, reconhecendo-o como "homem de visão", capaz de enxergar não só além do Rio Grande, mas também do Rio Guaporé - e constatar (sorry!) que por estas plagas do Cone Sul não ha grandes diferenças.

3. À parte esses meandros anedóticos, a transição brasileira implica desafio que transcende puramente a reestruturação dos sistemas político e econômico, aspectos suscetíveis aos olhos do Poder, ainda que a propaganda do governo apregoe "tudo pelo social".

4. E necessário chamar a atenção para um fenômeno surgido na célula da sociedade durante os últimos anos e que vem demonstrando o seu potencial desintegrador. Sua ação é sistêmica e escalar. Agride indiscriminada e impunemente todos os grupos sociais, todos os cidadãos.

5. Em verdade, cessados os efeitos anestésicos do milagre econômico, da euforia da redemocratização e do aumento da permissividade nos costumes, a sociedade brasileira parece imergir em uma crise de anomia - na acepção sociológica de Durkheim - ou seja, em um processo de desintegração das normas sociais.

6. Qualquer cidadão comum pode constatar que estamos atravessando um período de enfraquecimento de valores em todos os níveis, de tal sorte que as normas sociais se deterioram, subvertem e desintegram.

7. O impacto desse tipo de fissão em cadeia atinge o padrão, a regra, a lei e o costume. Refaz a ética e desfaz a moral. O que não se altera caduca ou fenece. O anômalo torna-se normal. 0 permanente rareia enquanto o transitório fica. Institucionaliza-se a transição.

8. Sob a égide da transição desmedulam-se a ordem e a autoridade, e surge uma moral imprecisa, inconsciente sem condições de estabelecer uma disciplina perene, porque as manifestações da vida coletiva vem sendoo despojadas da ação moderadora da regra.

9. Nessa devastadora anomia, nessa desestruturação de normas e valores é que se instala e pulula a impunidade Os exemplos estão em toda parte e ao alcance das mãos: na mão que apedreja o presidente da República; na que se compromete em campanhas eleitorais; na que empunha pistola clandestina para a guerrilha urbana do dia-a-dia, na que vasculha o bolso do contribuinte ao decretar e desdecretar impostos; na que cobra ágio ao consumidor ou na que corrompe as concorrências públicas. Naturalmente que nos segmentos econômicos da sociedade, onde a moral é mais flexível, a anomia tende a se propagar com maior celeridade.

10. Quando impera a anomia, qualquer ponderação de valores é caótica, e uma febril compulsão tende a germinar na vontade individual e com anuência coletiva. Tanto faz burlar uma fila, desrespeitar um semáforo, inadimplir crédito interno ou externo, descumprir padrões industriais de qualidade, justiçar na urbe ou no campo, leiloar verbas e cargos públicos. A anomia é uma patologia social que atinge o corpo e a alma da sociedade.

11. A gravidade excepcional desse estado de coisas é que um processo de contínuo desregramento plasma a aparência pluralista das liberdades democráticas, mas na realidade superalimenta o embrião das áspides totalitárias, sempre dissimuladas nas sociedades sem maturidade política ou em processo de desorganização econômica.

12. Segundo Durkheim, para que a anomia tenha fim é necessário que exista ou se forme um grupo onde se possa constituir o sistema de regras que faz falta. Não houvesse o sociólogo alsaciano apresentado essas ideias no século dezenove, diríamos que os seus ensaios sobre a anomia inspiravam-se na situação brasileira dos nossos dias, onde temos até uma assembleia constituinte que poderia ser o grupo salvador.

13. No caso do momento brasileiro, não é que faça falta um novo sistema de regras, como muitos querem crer, para se impor uma Constituição mágica, capaz de substituir o empírico pelo formal, a realidade pelo modelo, a pobreza pelo desenvolvimento. Todos sabemos qual o destino da nossa miríade de leis, códigos e regulamentos, desde a mais elementar regra de trânsito às linhas mestras da carta magna.

14. Sob o ângulo da moral econômica, não há dúvida de que o maior problema da atualidade brasileira é a dívida externa, eis que ameaça cercear a sociedade como um todo. Como as repercussões da anomia ultrapassam as nossas fronteiras, os banqueiros credores preferiram esperar a implementaçãoo de um novo sistema de regras e governo no país, para poderem definir a renegociação da dívida.

15. Essa atitude leva-nos à reflexão de que a pujança do sistema financeiro internacional foi construída não só com capitais, mas sobretudo com outro componente básico: um sistema de regras - antítese da anomia - embora se saiba que a moral econômica regente tenha sido flexionada em via de mão única.

16. Durkheim entendia a sociedade como um conjunto de ideais alimentados por indivíduos que fazem parte dela. Esses ideais seriam movidos por uma potência moral capaz de impor respeito à regra. No Brasil, não é um novo sistema de regras que faz tanta falta, mas sim uma supremacia moral que discipline a liberdade individual e a ordem coletiva. Essa supremacia moral é que poderia ser o legítimo antídoto para a anomia brasileira, mesmo tendo de admitir que, nas estruturas capitalistas como a nossa, sem liberdade econômica (poder aquisitivo), tanto o indivíduo como a sociedade possuem apenas liberdade nominal.

 

(Em MEU BRECHÓ DE TEXTOS–
 Ed. Imprimatur – 2012 – Rio de Janeiro/RJ)


(30 de agosto/2013)
CooJornal nº 855


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
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