01/12/2022
Ano 25
Número 1.298

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Carlos Trigueiro




UMA QUESTÃO DE COR

Carlos Trigueiro - CooJornal


A história a seguir era o roteiro de um filme em preto-e-branco.
Tentei dar-lhe cores literárias

Maria das Salvas, filha caçula de João das Salvas e Juvência - casal branco, de olhos claros e visão turva -, crescera com a ladainha nos ouvidos, "Fica longe dos pretos! Lembra das gêmeas, suas irmãs!". Sendo o mundo real indiferente àquele desenhado na cabeça das pessoas, Maria amava em segredo um rapazinho de origem etíope, Benevides - colega de turma e melhor aluno da escola pública naquele subúrbio. Beirava os dezesseis, dezessete anos. De boa índole, QI genial, não se envolvia com igrejas de aluguel infiltradas na escola, nem com qualquer outra droga. Em questões de estudo, colecionava prêmios, servia de exemplo e era referência da escola. Órfao, Benevides dependia de uma tia solteirona.

Maria das Salvas, exuberante aos quinze anos, superara de longe o manequim de menina-moça. Relevos pressionando o alinhamento do uniforme anunciavam a mulher. No verde dos olhos, o amor vicejando, enquanto o cenho pálido parecia exprimir um pesar que somente cedia na presença de Benevides.

No fim do dia, os estudantes retornavam a casa caminhando em grupos. Ônibus rareavam. Um ou outro aluno tinha bicicleta, de segunda, terceira mão, ou de mão a perder de vista. Falastrões, salpicavam de conversa fiada quiosqueiros, biroscas e vendilhões às margens da estrada. Depois, atravessando becos e ruelas, os grupos se desmanchavam, de sorte que Benevides e Maria das Salvas terminavam a caminhada quase sempre sozinhos. Uma vez que o coração do rapaz sintonizava com os anseios da colega, ambos concentravam a conversa nos próprios sentimentos, pouco importando o entorno.

Porém, até mesmo o amor não consegue imunizar as pessoas contra instâncias do cotidiano o tempo todo, e, lá pelas tantas, os adolescentes derivavam para preocupações escolares, carências domésticas, temores e esperanças da idade. Em matéria de crença, Maria das Salvas era devota dos anjos, e carregava santinhos na mochila. Já o rapaz não escondia cepticismo.

Anjos daqui, anjos dali, um dia a tia de Benevides foi sorteada numa rifa. Prêmio: bicicleta nova em folha. A boa senhora não sabendo de pedais, nem equilibrar-se sobre rodas, pensou vendê-la e reforçar o orçamento. Depois, achou melhor presenteá-la ao sobrinho, de modo que Benevides se viu pedalando o sonho de todo jovem daquelas bandas.

A felicidade sobre rodas afastou temporariamente o rapazola de suas caminhadas com os colegas. Mas logo, logo, Benevides sentiu falta dos olhos verdes e do ar fugidio da mocinha, até que num benfazejo intervalo de aula os enamorados combinaram voltar juntos na bicicleta. Desde então, amor e tempo passaram a correr sobre aros e rodas.

Não sendo a inveja privilégio de ricos e abastados, a maledicência inventou caminhos nunca percorridos pelos jovens. E porque a malícia dispensa roda para chegar mais depressa, conversas desvirtuadas emprenharam os ouvidos de João das Salvas e Juvência.

- Esse Benevides, que traz você de bicicleta, não é aquele preto metido a besta do outro quarteirão?

- Pelo amor de Deus, pai, o Benevides é o melhor aluno da escola, e ele não é besta - respondeu Maria, prevendo confusão.

- Dizem que não vai a nenhuma igreja; além disso, é preto! Todo santo dia repetimos pra você se afastar de crioulos! Já esqueceu a tragédia das suas irmãs? - disse o pai, enfurecido.

João das Salvas era de gênio rude. Calceteiro de oficio, sem ganhos e emprego certos - culpava os patrões que, segundo ele, culpavam os sindicatos, que culpavam os fiscais, que culpavam os políticos, que culpavam a televisão, que culpava o diabo. Sobrevivia de biscates e recorria a cachaça das biroscas vizinhas para aliviar suas frustrações. O engodo na rua sempre acabava em confusão doméstica.

Juvência ou era amarga ou era azeda. Costurava em casa sob encomenda para confecções de roupas. Trabalhava muito, ganhava pouco, tinha medo de tudo.

- Menina teimosa, não viu o que aconteceu com as suas irmãs? - atacou a mãe.

- Não tem nada demais, mãe, voltamos juntos da escola todo dia na bicicleta dele.

- Menina desgraçada, tirando sarro na bicicleta todo dia com aquele crioulo! - esbravejou o pai. - Vou te mostrar!

E esbofeteou severamente a filha. Não satisfeito, desatou o cinturão e surrou-a. Foi preciso Juvência intervir, atracando-se ao embriagado. João das Salvas gritou que preferia matá-la a saber que andava com um crioulo sem eira nem beira (expressão ainda usada naquele subúrbio).

Os gritos da menina ecoaram nas paredes, nas vigas, bateram no telhado, vazaram goteiras, ganharam o vento, sumiram na poeira. No tumulto, um santinho caiu da mochila, rodopiou, enviesou e sumiu. Durante a agressão, a mocinha invocara, "Valei-me, meu anjo da guarda!"

Envergonhada com os hematomas da pancadaria, faltou uma semana à escola. Quando retornou as aulas, tinha a carne sarada, alma purgando. Os pais justificaram as ausências com a desculpa de uma febre, coisa comum nos subúrbios, onde o estado é tão invisível quanto Ele, como alguém já disse.

Difícil foi evitar Benevides. De um lado, a atração irresistível do amor, de outro, as ameaças terríveis do pai. E morreria de paixão se o motivo da pancadaria extravasasse. Nos intervalos de aula se escondia nos banheiros. Na saída, remanchava.

Foram-se os dias, e, como nos quadrantes do amor, o tempo não compartilhado faz fronteira com a eternidade, remoer de infindáveis suposições levou o inteligente rapazinho a tomar decisão. Deixou a bicicleta em casa e retornou as caminhadas com os colegas. Disse à tia que vinha chovendo muito e a bicicleta ficava enlameada.

A mocinha preocupou-se vendo-o a pé, no meio do grupo. Caminharam próximos (mas não juntos) quase meia hora, com olhares desconfiados, palavras entrecortadas, corações aos saltos. Quando os colegas tomaram seus rumos, Benevides falou em tom baixo:

- Meu coração diz que aconteceu alguma coisa ruim, me conte, Maria das Salvas!

A jovem suspirou. Os olhos verdes vigiando perigos à frente, enquanto suor úmido escorria das frontes. Nuvens densas tingiam cores de pesadelo no céu. Sentiu o coração descompassado, pois já se aproximavam de casa e alguém poderia vê-los. Pior: denunciá-los ao pai. Olhou Benevides, não de todo dissimulada, respirou fundo e invocou, "Valei-me, meu anjo da guarda!"

Mal terminou a invocação, um relâmpago rasgou e cerziu o céu. De surpresa, a mocinha pegou o rapazola pelo braço e puxou-o para dentro de rústico quiosque abandonado. Um temporal começou a despencar. Valendo-se da cortina formada pelo aguaceiro, Maria abraçou Benevides pelo pescoço e disse tristemente:

- Não podemos ser amigos, meu pai me baterá, e ele jurou me matar se souber que ainda converso com você!

- Que loucura, nós não fazemos nada demais... E eu te amo, é um suplício ficar longe... Bem, tenho vaga ideia dos motivos do seu pai, mas preciso saber a verdade, me diz, Maria, me diz!

Benevides seguiu argumentando com desenvoltura de adulto e impaciência de adolescente. Maria das Salvas encostou o rosto no peito do rapaz. É nessas horas que a voz do sofrimento regride aos tempos primórdios. Podia ouvir-lhe a voz do coração, poderoso grito tribal, imune ao estrepito dos trovões e ao chuá das enxurradas.

- Me diz, Maria das Salvas?

Sentir-se amada por Benevides encorajou-a de tal modo que parecia capaz de enfrentar o próprio Dilúvio. Mas não conteve o amargor na boca, nem dominou o tremor das pernas sob a saia pregueada do uniforme. Enxugando lágrimas com o dorso das mãos, suplicou:

- Meu amor, me poupa dessa vergonha!

- Me diz, Maria das Salvas, me diz o motivo!?

Invocando outra vez, "Valei-me, meu anjo da guarda!", sentiu uma súbita carga de energia e, crendo estar sob a proteção do seu anjo, confessou cabisbaixa:

- É por causa da sua pele, mas eu amo você com qualquer cor, amo o que está dentro de você... - disse, perdendo o fôlego, com a palma da mão no peito do rapaz.

- Eu já desconfiava! Mas não tenho raiva dele, tenho até pena, muita pena, porque ele é vitima e carrasco da sua ignorância, e nunca vai entender que a pintura da nossa pele, da nossa carroceria humana é só uma coisa química, uma tintura da Natureza, como aprendemos nos livros, e não tem nada a ver com a pessoa que somos ou não somos...

- Benevides, meu amor, tudo isso vai passar. Tenho fé! Rezo muito pro meu anjo da guarda! Ele vai nos ajudar de alguma maneira... E nós vamos nos amar sempre, somos almas gêmeas!

Tremendo, Maria das Salvas beijou-lhe a boca úmida e disparou no rumo de casa. O aguaceiro desfez as lágrimas da jovem, enquanto o seu coração vertia outras torrentes. Benevides saiu ao quiosque e deixou-se encharcar, pensando, quem sabe, lavar a alma com os cristais da chuva. Sua pele negra e bela adquiriu brilho extraordinário sob os relâmpagos que descosturavam o céu.


*

Anjos conhecem de sobra as entradas, instalações, passagens e saídas da mansão do tempo. No dia em que João surrou Maria das Salvas, o santinho que caiu da sua mochila enfiou-se num vento encanado e chegou aonde tinha de chegar. Instantaneamente, o anjo invocado adentrou as dimensões terrenas e, invisível, presenciou a violência paterna, bem como recuperou antecedentes daquela família.

Apurou que jovens negros drogados estupraram as irmãs gêmeas num vagão de trem já se iam lá cinco anos. Desde então, as moças moravam com parentes no interior do país. João das Salvas mandou-as para longe por causa dos traumas. Uma perdera a fala, a outra engravidara. Mas, na cabeça do rude, foram as sequelas do parto que o obrigaram à medida extrema, já que, prematuramente, netos trigêmeos vieram à luz conforme as leis da genética.

*

Voltando ao dia do temporal, quando Maria das Salvas invocou o seu anjo da guarda sob relâmpagos formidáveis e confessou a Benevides o motivo torpe do seu afastamento, as coisas aconteceram mais ou menos assim. O anjo invocado aninhou Maria sob suas asas, desde o quiosque à casa da mocinha, e aguardou a noite chegar.

Lá pelas tantas, borrifou em todos os ambientes da moradia o encanto da sonolência e dos sonhos - que rapidamente surtiu efeito. João das Salvas se esparramou numa poltrona, cruzou a província dos sonhos meio tonto, até que, tonto e meio, começou a roncar. Juvência, pensando ser efeito da cachaça, deixou-o lá mesmo e entrou no quarto, sob estranho torpor. Acabou num sono pesado e entre sonhos desconexos. Maria das Salvas, silenciosa, deitou-se ao lado da mãe e adormeceu. Teve um sonho fantástico, em preto-e-branco. Vira seu anjo da guarda flutuando sobre nuvens de camélias e apontando o horizonte, talvez o futuro. Havia muita neblina no sonho, mas conseguira distinguir o próprio vulto, em vestido de noiva, logo abaixo do anjo e abraçado a Benevides.

Enquanto todos sonhavam, o ente celeste arrancou uma pluma de suas asas, embebeu o bico da pena em poção manipulada noutras esferas, e foi direto à poltrona onde João ressonava. Os tornozelos do homem escapavam das calcas. Meticuloso, o anjo infiltrou a poção alem da epiderme do bruto e retornou aos páramos de onde viera.

João acordou mal-humorado, reclamando de coceira em ambos os tornozelos. Queixou-se de que mosquitos o teriam picado durante a noite. Coçou-se sem-cerimônia. Sentindo a coceira aumentar, pediu à Juvência para esfregar algodão com álcool nas partes afetadas.

Assustaram-se.

Em vez de vermelhidão, viram estranha mancha violácea crescer em volta das supostas picadas. Reagindo ao álcool, a coceira abrandou, mas as manchas cresceram. Evoluíram tão rápido que, pela hora do almoço, a perna esquerda arroxeara joelho abaixo. E o mesmo sucedeu com a outra perna logo depois do jantar.

Um vizinho veio ver e assustou o casal ao dizer que aquilo parecia intoxicação ou até mesmo gangrena, e que era melhor procurarem a emergência medica do posto de saúde local. João das Salvas e Juvência combinaram ir ao posto na manhã seguinte, mas demoraram a adormecer, pois ficaram bom tempo discutindo sobre as possíveis causas da roxidão - que nem doía. O cansaço os venceu.

O rude despertou cedo, levantou-se e examinou a perna. Apavorado, gritou pela mulher. Da virilha para baixo, a perna esquerda estava roxa. Juvência, assustando-se com o que via, sugeriu-lhe uma ducha fria antes de saírem.

João foi ao banheiro, abriu o chuveiro, ensaboou-se bem devagar, com todo o cuidado, reparando o contraste entre a espuma branca e a perna roxa. Não sendo a intenção dos homens formulada com a química dos padrões celestes, estranha reação começou a se processar.

O calceteiro esbugalhou os olhos quando a outra perna ficou inteiramente roxa, e também a genitália, o ventre, o peito, os ombros, os braços, as mãos, os dedos. E, por incrível que pudesse parecer aos seus olhos de desespero, o corpo inteiro, até então arroxeado, foi escurecendo. E, em segundos que não completaram o minuto, João foi escurecendo mais e mais, cada vez mais, até ficar preto retinto.

De repente, a mulher ouviu um grito que vazou pela porta do banheiro, espalhou-se pela casa, bateu nas vigas, no teto, atravessou goteiras, zuniu nas calhas, saltou telhados, cruzou monturos, pulou esgotos...

Apesar do estardalhaço, Maria das Salvas nada ouviu nem despertou, possivelmente protegida pelo anjo. No entanto...

- Juvênciaaaaaa! Meu Deus! Corre aqui!

A mulher, muito assustada, se aproximou da porta do banheiro e viu alguém lá dentro.

- Misericórdia! Quem é você?

- Maldição! Sou eu, João, virei crioulo, negão!

- Meu Deus! Será que isso pega?


(Publicado em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA –
Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)

(RT, 02 de agosto/2013)
CooJornal nº 851.


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ




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