26/07/2013
Ano 16 - Número 850

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



Síndrome do Reajustável
 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

 (Publicado no Jornal do Brasil - 08-10-1989, Rio de Janeiro)



Consta que na maquiagem final do Plano Cruzado, quuando o documento ainda era segredo de Estado, coube ao próprio presidente Sarney retirar o "R" da sigla ORTN, título publico que balizou a economia nacional durante a ultima geração, originando-se dai a OTN, hoje ressuscitada como BTN.

Houvesse o plano logrado êxito, o simples apagar da letra "R" que significa "reajustável", poderia ter proporcionado ao presidente Sarney maior gloria do que todos os seus decretos e medidas provisórias e ao cidadão Jose Sarney maior fama do que seus livros traduzidos para o chinês e o russo.

É que a expressão "reajustável" não teria sido extirpada somente do título público ou dos quadrantes econômicos, mas de um universo muito maior da complexa realidade brasileira no que ela tem de mais pungente nessa aurora dos anos 90 - o caráter mutável, transitório e indefinido dos valores que norteiam a nossa sociedade.

De fato, parece que uma "síndrome do reajustável" extrapolou o seu originário campus econômico e infiltrando-se nas malhas do tecido social, atingiu o Estado, o governo, a política, a administração pública, a iniciativa privada, os lares e o dia-a-dia.

Mais do que isso. Parece que tal síndrome se alojou no animus, na psique da sociedade. No seu inconsciente coletivo. O Brasil de hoje vive sob o signo do "reajustável". Tudo se tornou elástico, flexível, modelável, fugidio e efêmero. Desfigurou-se o conceito de precisão. A procura da certeza e exatidão desperta pouco interesse. Vale o aproximado. Vige o mais ou menos. Cultua-se a estimativa.

Essa nova onda ética se sobrepõe e a tudo quer reajustar: forma, conteúdo, parâmetros, valores, pesos e medidas. No início, a sua força motriz era o processo inflacionário auto-reajustável pela indexação monetária. Hoje, a inflação vai cedendo lugar a um surto de irresponsabilidade social generalizada, a um prenuncio de anomia que abala o Estado, deturpa as empresas, amedronta as famílias e confunde o cidadão.

À medida que a síndrome se espraia, ela definha a vontade individual, desorienta o comportamento coletivo, entorpece a moral e justiga a juridicidade do Estado. Não vale o que está escrito. Se vale, é "reajustável". As leis vão-se tornando meros pontos de referencia e os tribunais, monumentos institucionais.

Na esfera política, a síndrome é arrasadora: a Constituiç~so tem arcabouço parlamentarista, mas se reajusta com fisiologia presidencialista: o país se configura como Republica Federativa, mas atua como Estado unitário: políticos reajustam-se de partido em partido e estes de ideologia em ideologia. Vigora o "reajustável". E a Constituicção e a forma de governo já têm prazo para isso.

Por outro lado, a economia do país, devastada por enorme defasagem fiscal e malversação de recursos, reajusta-se nas irrefreáveis emissões monetarias, nos juríssimos da dívida pública e nos subterrâneos da economia informal. Para a espiral inflacionária achou-se um novo tipo de reajuste: o patamar. Mas, de patamar em patamar, a inflação segue vilipendiando as leis da oferta e da procura e degenerando a estrutura de preços e salários. O próximo patamar pode ser a hiperinflação declarada.

Nesse frenesi de reajustes, as atividades produtivas abandonaram as mais elementares regras orçamentárias, enquanto as famílias aboliram o simples orçamento doméstico. Ninguém em sã consciência sabe exatamente quanto ganha ou despende. Bônus, índices, obrigações, moeda estrangeira servem de moeda. A moeda mesma não serve.

Porém, é no dia-a-dia que a perversidade da síndrome se potencializa. Quando o individuo comum é coagido a reajustar seus hábitos domésticos, seu espaço de cidadania, seu direito de vida. Porque assaltos, chacinas, sequestros, motins, saques estão agredindo, a olho nu, o que restou de ordem e autoridade. Parece que as fronteiras da criminalidade e da ordem se amalgamaram, se ajustam e reajustam entre si por obra de mesquinhos interesses grupais acobertados pela corrupção e sob o lastro da impunidade.

Esses reajustamentos mórbidos e permanentes tendem a aniquilar a memória da sociedade, a anular a dimensão psicológica de um futuro melhor e a condenar-nos a um presente sem inspiração, puramente maquinal.

E contra esse quadro patético que a boca das urnas poderá, nas eleições que se avizinham emitir um feroz grito de revolta: "o governo morreu, viva o governo", ou quem sabe: "o Estado é morto, viva o Estado".

 

(Em MEU BRECHÓ DE TEXTOS–
 Ed. Imprimatur – 2012 – Rio de Janeiro/RJ)


(26 de julho/2013)
CooJornal nº 850


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com


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