01/11/2023
Ano 27
Número 1.341

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Carlos Trigueiro




O JORNALISTA

Carlos Trigueiro - CooJornal


A história a seguir foi escritaa quatro mãos. Duas femininas e duas masculinas.
Casá-las foi mais que penitência.



Fabrício vinha questionando se tomara o rumo certo. Beirando os sessenta, solteirão, solitário, sem família, parentes. Nem mesmo uma doméstica para cuidar da casa. Se pudesse, gostaria de ter uma governanta que tomasse conta de tudo. Inclusive dele. Porém, jornalista modesto só podia sonhar. Enquanto isso, amigos, prazeres e oportunidades rareavam.

Saía tarde da redação. Primeira edição embaixo do braço. Na sua avaliação, individualismo ainda tinha algumas vantagens. Exemplo: havia anos se libertara da tirania das horas. Aliás, constava do anedotário do jornal que um assaltante levara seu relógio de pulso e que Fabrício não reagira, não dera parte à policia, nem comprara outro. Apenas dissera ao bandido: "Vai pro Inferno com o relógio."

Após um dia pesado, o hábito empurrou-o para casa. Abriu a porta do apartamento, acendeu luzes, desviou o olhar da desarrumação na sala, estreitou o passo entre pilhas de jornais, entrou no quarto. Colocou os óculos na mesinha de cabeceira. Intimação fisiológica levou-o ao banheiro. Demorou. Talvez embarcando num cochilo.

Voltou ao quarto. Não terminou de vestir o pijama, nem apagou a luz do abajur. Mal deitou na cama, roncaria intensa vazou o ambiente, espalhou-se e ganhou, sabe-se lá, outras esferas.

Momentos depois, despertou com o ruído do próprio ronco. Ou com o desconforto do suor a empapar-lhe têmporas e pescoço. Pelas frestas dos cílios viu a luz do abajur derramando estranho colorido no quarto. Piscou os olhos modorrentos e ergueu a cabeça. Sem óculos, percebeu um vulto sentado na extremidade da cama. Perturbou-se, imaginando outro assalto.

A experiência socorreu-o. Curtido no vaivém dos fatos e no corre-corre das notícias, sabia que o absurdo de hoje pode ser banal amanhã. E vice-versa. Colocou os óculos, girou o corpo e tentou pôr os pés no chão. O calor do assoalho chamuscou-lhe a sola. Decidiu enfrentar o absurdo.

- Quem é você? Se quer dinheiro, bateu na porta errada; alias, nem bateu...

- Desculpe se o assustei... - disse o visitante, falando de perfil. Aparentava um sujeito comum, não fosse o terno preto fora de moda.

- E daí, quem é você? Sem nenhuma cerimônia sentado na minha cama; não sou oque esta pensando!

- Tenho muitos nomes: Anjo Caído, Anjo Rebelde, Belzebu, Satanás, Capeta e outros, mas pode me chamar de Diabo, fico mais à vontade - atalhou o visitante com voz estudada, mantendo o corpo longilíneo de perfil para o jornalista.

- Essa historia é velhíssima! Você entra aqui, diz que é o Diabo, que quer comprar a minha alma, que vai me pagar com alguma coisa mirabolante, e...

- Os tempos mudaram! A crise anda solta, preciso de ajuda! - interrompeu o estranho, quase melancólico.

Apesar de extravagante, o visitante falava com equilíbrio. Mas, em se tratando do Diabo ou de alguém querendo passar pelo dito, Fabrício achou melhor esgrimir sua perspicácia de jornalista.

- Prove que é mesmo o Diabo!

- Não sente calor aqui dentro? - perguntou o estranho, a contragosto.

- Está um forno! - respondeu Fabrício, enxugando o suor da testa com a barra do lençol. - Mas o clima anda meio louco em toda parte, me dê uma prova convincente!

O visitante rodopiou a cabeça sem mover tronco e pescoço, fez crescer dois chifres na testa e alongou as orelhas com leve toque de mãos. Também sacudiu um rabicho que lhe saiu do traseiro. A fim de não pairar dúvida quanto à sua identidade, soprou labaredas a meio metro de distância e, ato contínuo, sugou o fogaréu deixando escapar fagulhas e crepitações pelo canto da boca.

Sendo o cumprimento de tais exigências tremendo desaforo para o Diabo, eis que o danado, em retaliação, expeliu pela parte apropriada forte cheiro de enxofre, impregnando o quarto e adjacências antes de reassumir a aparência humana.

Em face da apresentação de credenciais incontestáveis, Fabrício ensaiou pedido de desculpas, mas o cacoete jornalístico atropelou a intenção.

- Como posso ajudar o Diabo?

- Com a sua experiência. Os tempos ficaram difíceis, mesmo para um pobre Diabo! Não há mais pecadores na moita, disfarçados; a maldade é explícita, está em toda parte. A televisão e a internet vulgarizaram o pecado. Moral, ética e bons costumes só existem nos livros. A ambição do homem subverteu valores, industrializou a sacanagem, globalizou a perdição. Em suma, o inferno está superlotado!

- Você devia estar contente!

- Contente?! Ninguém faz ideia da trabalheira para arranjar expiação aos milhões de pecadores. Nem do desgaste demoníaco para adaptar velhas engrenagens de suplícios e fornalhas à nova tecnologia, à dinâmica dos cliques e à tirania do controle remoto. Além disso, atender fornecedores corruptos, molhar a mão de políticos, intermediários, lobistas, lavar dinheiro sujo, fiscalizar material falsificado, adulterar mapas e estatísticas sobre a multidão crescente que entra! Isso é infernal!

- No Inferno não há computadores?

- Pifaram! Os sistemas não acompanharam a diversificação dos pecados. Os demônios programadores andam exaustos! Uns ameaçam desertar. Outros querem mudar de departamento, de divisão, de função, de turno. A maioria só permanece no inferno por causa da onda de desemprego mundo afora. Ainda assim, muitos fugiram e estão se infiltrando nos esquadrões do narcotráfico, do terrorismo, e no sistema político de alguns países.

Fabrício já encarava o Capeta como pobre-diabo, quando se deu conta de que devia injetar dose de astúcia ao diálogo:

- O Inferno ainda precisa daquela estrutura burocrática pesada, com diretorias, departamentos, divisões, consultorias, gabinetes? Sou contra ideias neoliberais, mas vai ver e hora de mudar, terceirizar...

- Nem pensar! O Inferno executa serviços públicos essenciais para purificar o mundo, é um patrimônio cósmico inalienável desde o início dos tempos!

- Então, como posso ajudar?

- Preciso de informações.

- Que tipo de informações?

O Diabo não seria tão afamado se não pintasse mais feio o próprio drama. Primeiro, queixou-se de lapsos de memória, e disse que o provérbio "O diabo é mais diabo por velho do que por diabo" já era. Lamentou que os novos condenados ao fogo eterno contrabandeassem mazelas desconhecidas e contagiassem os jovens capetas.

Depois, com lábia diabólica, chegou ao xis da questão. Contou que o conselho superior dos demônios incumbira-o de salvar o Inferno da avalanche de pecadores. Revelou que, infelizmente, nos últimos tempos, costumava cochilar durante as reuniões do conselho e chegava a roncar durante a leitura de atas. Assim, justamente no debate sobre estratégias para a salvação do Inferno, perdera valiosas informações, ao cochilar enquanto se apoiava num tridente.

Depois de ouvir a parafernália de resmungos, Fabrício perguntou:

- Que fez da sua astúcia de velho Diabo?

- Só deu para ouvir o final da ata. Os conselheiros decidiram me enviar ao mundo terreno com a missão de aniquilar os dois culpados pela superlotação do Inferno.

- Dois culpados? Fizeram pesquisa?

- Claro! A infalível pesquisa de "boca-do-inferno" que, aliás, vocês imitam em época de eleições com a tal boca-de-urna, respondeu o Diabo, com escárnio. E continuou:- Metade dos entrevistados alegou ter ido para o Inferno por causa do "Sistema", e a outra metade culpou um tal de "Mercado". Preciso de informações sobre essa raça!

Fabrício meneou a cabeça ou fez um trejeito, nem o Diabo soube ao certo. Nafalta de melhor expressão, disparou:

- Você entrou numa fria!

- Mas não vai me ajudar?

- Não posso - respondeu seco o jornalista.

- Como não pode?! Se me der as dicas de como liquidar a dupla "Sistema" e "Mercado" faço qualquer coisa por você, dou-lhe tudo o que precisa - acrescentou o Diabo com voz melíflua.

- Minha alma não esta à venda, nem preciso de nada; estou satisfeito comigo mesmo e com o que faço! - afirmou o jornalista, corajosamente. - Aqui, quem precisa de alguma coisa é você! E vou adiantando, não pense que o dueto "Sistema" e "Mercado" é festivo como dupla sertaneja! Mesmo para o Diabo, sua missão é difícil, talvez impossível! - E continuou: - O "Sistema" é todo-poderoso, intocável, está acima do Bem e do Mal, tem sete vidas vezes sete, mil couraças, filtros, teias, espiões por toda parte, às direitas, no centro, às esquerdas, faz mutretas, tece articulações político-partidárias nacionais e urde grandes jogadas internacionais. E impõe, faz e desfaz regras, sempre a seu favor. Quem se rebela contra o "Sistema" é engolido por ele ou a mando dele! Lamento, mas você cochilou na hora errada e se ferrou!

O Diabo, pela primeira vez, se exaltou. Enrubesceu e soltou baforadas roxinhas de raiva. Percebendo o excesso, tratou de engolir o fogaréu. Recompondo-se, insistiu:

- Mas, e o "Mercado", talvez eu possa dar-lhe umas porradas, digo cornadas!

Fabrício ponderou que o tal de "Mercado" era imponderável, sem nome de família, identidade, profissão, cor, nacionalidade, idade, sexo, filiação, senha, estado civil, passaporte, escolaridade, alvará, residência fixa, e não tinha sítio na internet, email nem mesmo um blog. Explicou que o "Mercado" era tremendamente complexo e, além do mais, garantido pelo "Sistema" com o qual mantinha conspícua ligação.

Porém:

- Minha experiência diabólica diz que onde há ligações, há fraquezas. Se não posso acabar com eles, vou atazaná-los durante um bom período; enquanto isso, os demônios convictos terão tempo para reorganizar a estrutura, os sistemas e a parafernália do Inferno.

- Bem, você pode atazanar os dois, mas será por um tempo curto, pois logo eles vão reagir. A dica é atacar primeiro o "Mercado", que tem pontos fracos e é sensível à corrente de ar, vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitações publicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo, camelôs, discurso ou silêncio de autoridades, esquema de privatizações e...

Ouviu-se um estalo. Não deu para saber se o Diabo materializou uma inspiração ou se rangeu os dentes ou abanou o rabicho ou se...

Arisco, pôs-se de pé, agradeceu as informações e perguntou a Fabrício quais eram as suas maiores carências, porém, o jornalista respondeu que só queria dormir em paz. O visitante rodopiou a cabeça, ajeitou o terno fora de moda e despediu-se com uma crepitação no canto da boca. Mal se precipitou pela janela, a temperatura do quarto caiu. Fabrício enfiou-se nos lençóis e voltou a roncar.

No dia seguinte, o trabalho na redação foi infernal. Desde cedo, circularam boatos de que o fim do mundo ocorreria em uma semana. Qualquer notícia corriqueira assumia proporções catastróficas: a queda de um barranco virava terremoto, o furto de uma sacola de supermercado ganhava status de assalto a banco, coisas assim.

Para acentuar o medo, inexplicável vírus em forma de tridente penetrou tudo quanto era tipo de computador e se fincou como única ferramenta para acessar a internet. E não faltaram especulações nas Bolsas, nos bolsos e até nos nichos religiosos, pois vazou secretíssima informação: Deus ia reavaliar os pecados ativos e passivos!

Então, o "Mercado" desabou. Conforme o jornalista previra, logo o"Sistema" reagiu. Medidas provisórias e extraordinárias proliferaram, autoridades do mundo financeiro baixaram taxas de juros, e os fundos chamados soberanos regados a petróleo contiveram o maremoto nas bolsas. Restava esperar uma semana.

Enquanto isso, formaram-se intermináveis romarias aos templos de todas as religiões. Só assim a humanidade conseguira se envolver numa corrente virtuosa. Pelo sim, pelo não, pecadores do mundo inteiro começaram a se arrepender, pois precisavam viver a última semana em castidade. E, assim, trilhões de pecados foram protelados.

Fabrício, no corre-corre do expediente fora do comum, nem teve tempo de pensar na noite anterior. Como sempre, saiu tarde da redação. Ao abrir a porta do apartamento, espantou-se. Tudo limpo e arrumado. A mesa de jantar preparada para duas pessoas. Temia o retorno do Diabo, quando reparou na criatura do sofá.

- Boa-noite, Fabricio! - E uma linda mulher estendeu-lhe a mão perfumada.

- Quem é você, e o que faz na minha casa?

- Sou Annabela, a governanta contratada por seu amigo, o Anjo Caído, foi assim que ele se apresentou na consultoria onde trabalho...

- Não posso pagar nem faxineira!

- Seu amigo pagou tudo adiantado, montante graúdo, renovável e vitalício! Você vai gostar. No gênero, somos a melhor consultoria do mercado. Aquelas pilhas de jornais velhos espalhados pelo apartamento já foram para o lixo. Veja só, está tudo pronto: banheira, roupão, chinelos, música ambiental, jantar, cama arrumada, camisinhas... Se amanhã você chegar num horário conveniente, quem sabe, terá uns drinques antes do jantar!

- Horário?! Não tenho nem relógio!

- Tem sim, o seu amigo me pediu para entregar-lhe este aqui, é antigo... dei-lhe corda, e está trabalhando, só achei que tem uma quentura estranha nele.

- Diabos! É o meu relógio roubado faz trinta anos!

- Seu amigo também mandou um recado.

- Que recado?

- ... disse que, como você não quis vender a sua alma, ele teve de negociar algumas coisas com o "Sistema".

- O quê?! Com o "Sistema"?! Diabo traidor!

- Não se aborreça, ele também mandou dizer que o "Sistema" adorou as suas ideias e já começou a privatizar o Inferno!


(Publicado em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA –
Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)


01/04/2020
RT, CooJornal nº 1171.




Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
carlostrigueiro28@gmail.com




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