16/10/2022
Ano 25
Número 1.292

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Carlos Trigueiro




CAMINHADAS AO ENTARDECER

Carlos Trigueiro - CooJornal



Seguindo orientação médica, adoto tratamento coadjuvante para equilibrar a pressão arterial, avivar a memória e reativar penduricalhos que o decoro impede propagar. Assim, faço caminhadas nas ruas próximas aqui do bairro, tão logo o lusco-fusco do entardecer entra em cena. Semana passada, ia distraído no percurso habitual, mergulhado em tramas de três casamentos desfeitos e tranças de namoradas recentes que não atam nem desatam, quando avisto antigo colega dos meus tempos de redação no jornal.

Passei do aceno ao aperto de mão. Ia abraçá-lo, mas ele se esquivou exalando estranha umidade. Fui logo dizendo:

— Pedro Morais! Quanto tempo! Como vai essa força? — primeiro ele me olhou vacilante. Vencida a hesitação respondeu:

— João Andre, nem acredito! Ainda tem o mesmo ar jovial, não, não é possível, você deve ter sido clonado! Bom quanto a mim, vou levando como Deus quer: tratamento daqui, fisioterapia dali, remédio pra isso, remédio pra aquilo — finalizou, baixando o entusiasmo.

— Pois é, faz quase dez anos que não nos vemos, aliás, acho que desde o enterro do Cachoeirinha — disse eu tentando elevar o tônus do encontro e sutilmente advertir que estávamos vivos. Ele não percebeu minha intenção.

— Acho que você não me vê há muito mais tempo, pois eu e o Sergio Cachoeirinha fomos juntos ao seu enterro — disse ele com voz pausada.

Pensei no que acabara de ouvir e fiz um voo de ida e volta no tempo. Nosso ambiente na redação do jornal era descontraído e ensejava gracejos de todo tipo. Recuperei arquivos memoriais e lembrei que o Pedro Morais tinha fama de desligado. Talvez, agora, tivesse piorado por causa dos remédios. Andei lendo sobre efeitos colaterais desses medicamentos sintéticos modernos. Quando caem mal trazem mais doença que cura. E coerente com nossos tempos de muita informação e pouca precisão, me fiz desentendido. Desacelerei o raciocínio sobre o que poderia estar acontecendo com o antigo colega, caprichei na simulação e continuei a conversa.

— Também tomo remédios, faço ginástica e caminho diariamente. Na nossa idade não tem outro jeito de alongar a estada neste planeta — pensei que dizendo isso, traria a conversa para os limites da normalidade. Porém, ele insistiu nos patamares do absurdo e me deixou em desconforto.

— De vez em quando vejo por aqui antigos companheiros do jornal que, infelizmente, já nos deixaram. O curioso é que toda vez que encontro o Veiga Matos, o João Musa e o Cachoeirinha eles dizem: "na nossa idade não tem outro jeito de alongar a estada neste planeta". Até parece cacoete dos nossos tempos da redação. Donde se conclui que os cacoetes duram mais que os cacoeteiros!

Senti o coração acelerar. Respirei fundo, contei até dez, e levei em conta o que lera sobre possíveis alterações de comportamento provocadas por certas substâncias sintéticas. Tentei de novo corrigir o rumo da conversa:

— Meu caro, os laboratórios alertam que drogas sintéticas podem provocar tonteiras, sudorese, alergias, perda de memória, alterações do sono, do equilíbrio, do humor, e outros distúrbios. Você me parece meio alterado!

Ele não deu a mínima ao meu arrazoado e persistiu no clima do absurdo:

— Também andei lendo sobre os prodígios das substâncias sintéticas que refazem células, reconstituem órgãos, ressuscitam a ereção. E li também sobre a duplicação do corpo humano, isso que chamam de clone... Bem, você deve saber mais do que eu sobre o assunto, pois está com a aparência tão boa que deve ter sido clonado muito antes do seu enterro, fala a verdade!

Percebendo inútil conversar nos parâmetros da normalidade, tratei rapidamente de me despedir. Aleguei um compromisso inadiável. Trocamos novo aperto de mão e desejei-lhe felicidades. Ainda fiel ao espírito brincalhão dos tempos da redação, pisquei o olho em sinal de troça, e mandei lembranças aos falecidos Veiga Matos, João Musa e Sergio Cachoeirinha. Atravessei a rua feito um raio.

Ao chegar a casa, fui direto ao espelho do banheiro onde costumo me barbear, pois ali há um aparato de luzes deixado por minha terceira mulher e que fazem a noite virar dia. Olhei-me de vários ângulos, revirei os olhos, torci o nariz, botei a língua pra fora, e me certifiquei de que estava vivinho da silva. Por desencargo de consciência puxei as gavetas dos armários onde abrigo arsenal de medicamentos, reabri caixas, estirei invólucros e li pelo menos meia dúzia de bulas com o auxílio de uma lupa. Eu tinha razão. Os laboratórios farmacêuticos alertam que determinadas substâncias sintéticas podem provocar alterações na memória, no comportamento e até alucinações.

Ao entardecer do dia seguinte, retomei a caminhada habitual. No início do percurso ainda rememorei o surpreendente encontro com o Pedro Morais, mas afastei-o do pensamento. Entretanto, lá pelo meio do percurso, tive a impressão de avistar os vultos do Sergio Cachoeirinha e do Veiga Matos vindo ao meu encontro. Meu coração deu um salto olímpico. Antes que os padrões conscientes elaborassem explicações, minhas pernas driblaram carros, ônibus e motos pela frente, e puseram-me a salvo do outro lado da rua. Chegando a casa, esbaforido, tomei um calmante e marquei consulta com o meu médico para o dia imediato.

No consultório, relatei ao geriatra o encontro com o Pedro Morais e o quase encontro com os outros dois antigos colegas. O doutor ouviu-me impassível e não fez caso do motivo da consulta. Examinou-me, mediu a pressão, a temperatura, o pulso, pesquisou a língua, os olhos, apalpou o pescoço, perguntou sobre a minha medicação e respectivas dosagens que receitara. Respondi tudo nos conformes. Pediu-me então para contar o motivo que me levara ao consultório fora de época, ou seja, para eu repetir a mesma história que acabara de narrar. Ia perdendo a paciência, mas, pensei melhor e achei que o doutor queria testar minha coerência fatual no tempo e espaço.

Para meu espanto, quando terminei de repetir o relato sobre os antigos colegas, o médico disse que eu tivera muita sorte. E explicou-me que alguns dos seus pacientes da minha faixa etária, medicados com substâncias similares, enfrentavam situações parecidas durante as caminhadas ao lusco-fusco do entardecer. Porém, aduziu que aqueles pacientes diziam encontrar ex-namoradas, ex-noivas, ex-amantes, ex-companheiras e ex-esposas. Ponderou que tais situações eram muito mais embaraçosas do que a minha experiência porque, segundo eles, as mulheres "ex" cobravam promessas não cumpridas, tratos rompidos, obrigações caducadas, exigiam correção de pensões, novas indenizações, enfim, botavam pra fora a incrível capacidade feminil de questionar. Pior ainda: reabriam antigas rusgas, rixas e discussões, e faziam escândalos no meio da rua.

Diante do meu olhar cético, o doutor sempre convicto de si pegou o receituário, preparou nova receita e explicou que, considerando o meu relato, estava trocando a medicação, e alterando dosagens e horários das ingestões. Mas frisou de modo firme que manteria inalterado o tratamento coadjuvante, ou seja, a recomendação das caminhadas no lusco-fusco do entardecer.

Eu mudei de médico.

(Em "BRASIL, mais que um país, uma inspiração!" -
Ed. Artpop Academia de Artes de Cabo Frio, 2011) -
(Versão em Espanhol na Coletânea "BRASILENOS DESLUNBRAN" -
Valladares Books, 2011- Rio de Janeiro)

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email carlostrigueiro28@gmail.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ




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