16/04/2022
Ano 25 Número 1.268
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
- Nesses tempos pós-modernos em que os objetos
enxergam, detectam, espionam, memorizam, calculam,
filmam, tocam, sentem, reproduzem e falam o que
bem entendem sem limitações de lugar, distância,
fuso horário ou emoções, ocorreu o seguinte
diálogo:
Mochila Surrada: “Nossa, que cara
feia, aconteceu alguma coisa?”
Mochila
Nova: “Não aguento mais esse burro que me carrega!
O animal só falta meter a casa inteira aqui
dentro. Estou me estufando toda pra acomodar dois
celulares, carteira cheia de documentos e pouco
dinheiro, cartões de visitas que não acontecem,
santinhos de amigos candidatos a isso e aquilo,
maço de cigarros, fósforos, vela pro santo,
minidicionário com a nova ortografia, moedas
soltas, esferográfica sem carga, papel pro
baseado, par de head-phones, caderno de espiral,
jornal de anteontem… Arre! E quatro livros virgens
que não são lidos nunca, três porta-retratos de
namoradas antigas, lanterna sem pilha, talão de
cheques, volantes de loteria, proposta de
financeira pra financiar a moto sonhada, marmita
vazia, par de tênis e boné sobressalentes, estojo
com escova de dentes e tubo de pasta, fita dental,
bermuda pra consertar, miniguarda-chuva mofado,
cotonetes, cortador de unhas, raquete de tênis com
o cabo pra fora, canivete… Ufa! Camisinhas no
invólucro, calção de banho, camiseta de grife
falsificada, lata de refrigerante diet a consumir,
embalagem de seis iogurtes com cereais, dois
halteres surrupiados da Academia, figa pra cortar
mau-olhado, relógio de pulso parado, chaves de
casa, saco de amendoim, comprimidos de Viagra,
frasco com cristais de gengibre… Arre! Ufa! E
assim essa besta vai a toda parte, não liga se
estou tomando chuva ou pegando sol, vai esbarrando
nas pessoas e em outras mochilas na rua, no
ônibus, no metrô, e eu levando pancada, sendo
empurrada, e ninguém pede desculpa… Arre! Pior é
que essa besta não me dá a mínima, nem me olha,
claro, estou nas suas costas… Pra mim chega! Hoje
mesmo, na hora do rush do metrô, vou abrir a minha
costura do fundo e deixar cair no chão toda essa
porcaria que carrego dia e noite, e noite e dia…”
Mochila Surrada: “Calma! Precisas ter
paciência com essa nova geração. O animal que te
carrega ainda está em formação. Já passei por tudo
isso que me contaste. Mas hoje, vês como estou
magrinha? A besta que me carrega entendeu que o
mundo dá muitas voltas e há outras prioridades na
vida. Então, foi largando tudo que não servia de
imediato, e agora só me deixou com essa
protuberância que sobressai bem aqui no meio!”
Mochila Nova: “Mas eu estou nas últimas… Aqui
dentro não cabe nem mais um palito! Sim, vi que
estás magrinha e só tens essa protuberância bem aí
no meio… Afinal o que carregas agora?”
Mochila Surrada: “Na verdade, com o passar do
tempo, a besta que me carrega começou a beber,
largou emprego, amigos e namoradas, e então se
afeiçoou a mim, dia e noite, noite e dia, morre de
ciúmes e me isolou de tudo e de todos… Bem,
resumindo, estou grávida de seis meses!”
(RT, 15 de fevereiro/2013) CooJornal nº 827
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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