01/06/2022
Ano 25
Número 1.274






ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK 



 

Braz Chediak


É TÃO SUBLIME O AMOR



Tinha dois amores na vida: a mulher e o canário.

No emprego, comentava com os amigos: - Ganhei na loteria, Marly é a melhor mulher do mundo!

Aos domingos, quando ia tomar uma cerveja no bar da esquina, levava o canário, cabecinha de fogo virado na gaiola, que cantava na mão.

- Este eu não vendo por dinheiro nenhum! Não troco por nada.

E em seus momentos de reflexão concluía: “Deus foi bom comigo. Não fosse o gato da Marly...”

Marly tinha dois amores na vida: o marido e o gato. Com as amigas, comentava: - Meu marido me trata a pão-de-ló. Faz tudo o que eu quero. Eu adoro ele!

Quando estas mesmas amigas iam visitá-la ela exibia seu gato com orgulho. O bichano, um siamês legítimo, roçava suas pernas, espreguiçava-se em seu colo.

E em seus momento de reflexões, pensava: “Sou a mulher mais feliz do mundo. Não fosse o canário do Flávio...”

E a vida corria solta, alegre, o casal numa lua-de-mel que causava inveja à cidade. Casados há cinco anos, nunca tiveram uma briga, nem uma cara amarrada. Nada.

Até que um dia aconteceu o inevitável: o gato, aproveitando um descuido do casal que, cansado de uma noite carnavalesca, esqueceu a porta da dispensa aberta, devorou o canário.

Quando levantaram de manhã, o bichano ainda tinha a boca vermelha de sangue. Flávio deu um grito, correu para a gaiola e encontrou-a quebrada, penas por todos os lados. Voltou para a sala e, com fúria, chutou o gato, jogou-lhe cadeiras, copos, etc. A mulher, assustada com a transformação do marido, encolheu-se, com medo. O gato, apavorado, pulou a janela da rua: ouviu-se apenas um ranger de pneus, um miado longo e final. A mulher, atônita, desesperada, começou a gritar:

- Assassino! Assassino! Assassino!

E o marido:

- Desgraçada! Desgraçada!

A briga continuou por algum tempo, até que cada um foi para seu lado. Pela primeira vez dormiram em quarto separados.

A relação acabou. Os amigos de Flávio comentavam aos cochichos:

- Alguma coisa há! A Marly com aquela carinha de anjo... Boi sonso é que arromba o curral!

As amigas de Marly comentavam: - Vai ver o safado arrumou outra! Confiar em homem, minha filha...

O certo é que ambos se tornaram tristes, ranzinzas, vivendo sob o mesmo teto sem trocar palavra, rolando na cama com saudades dos dengos, dos chamegos, dos carinhos.

E na véspera do aniversário de casamento, um sofrimento profundo se apoderou dos dois.

Ele desabafou com os amigos. Ela desabafou com as amigas.

Acabar com o casamento por causa de um canário, de um bichano?

Ele jurou para si mesmo nunca mais ter passarinhos. Ela jurou para si mesma nunca mais ter gatos. E ambos tomaram a mesma decisão: “vou me reconciliar!”

No dia seguinte ele deixou o trabalho para comprar um presente para a mulher, faria uma surpresa. Ela saiu de casa para comprar um presente para o marido, queria surpreendê-lo.

À noite, quando ele chegou, ela escutou o barulho das chaves e saiu do quarto com seu presente nas mãos. Ele entrou. Ambos pararam, um em frente ao outro. Ela com uma gaiola novinha, com um canário cabecinha de fogo, ele com um gato siamês legítimo nos braços.

O pássaro começou a se debater na gaiola, com medo. O gato olhou o canário, com ódio.

Lá fora, tocava um bolero.



(RT, 05 de fevereiro/2005 - CooJornal nº 406)



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Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG



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