16/09/2023
Ano 26
Número 1.335


 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud
 


TARDE NA TERRA

 

Antonio Nahud - CooJornal

"(...)a paisagem é de uma grande melancolia simpática,
de um encanto profundamente penetrante" (Ramalho Ortigao)



Era sábado, por volta da uma da madrugada. Estava uma lua cheia radiosa, passava-se a cena num bosque de pinheiros beirando o mar. Gatos no cio saltavam dos arbustos e um incrível mistério tomava conta do silêncio. Sentia medo, assaltado por uma metamorfose de seres, uma migração de estrelas. Num flash, pensei no verdadeiro, no falso, no bem e no mal. Gritos de pássaros noturnos cortaram as reflexões. Iluminada à contra-luz, a folhagem dos pinheiros eram exuberantes e sombrias, deixando passar pouca luz da lua. Havia qualquer espécie de sortilégio na doçura desse estado. O vento do verão se quebrava na pequena barraca. Sem artifício algum, tal como quem costuma cheirar uma substância aromática, deitei-me nas folhas secas, entre o sonho e a realidade, mergulhando nas cores concentradas da noite. Adormeci pensando em cavalos alados, sereias, espíritos assombrados, quimeras.

Acordei banhado pelo sol gigante, num céu com poucas nuvens brancas. Um mar de água clara seguia as vibrações do sol. As gaivotas dormiam tranquilas nas águas. Uma borboleta dançava. Eu costumava passar horas diante do mar. O miradouro onde sentava estava virado a oeste e de lá via-se o farol do cabo Espichel. A água do mar era de um azul profundo, o ar cheirava a mato e frutos, a praia estava deserta, a areia era intensa e branca. Acomodei-me neste paraíso durante um mês e quando decidia ir à civilização, quer dizer, à aldeia, um local medíocre cheio de bares e de gente banal e de instrumentos de consumo, era tomado por uma agonia, uma angústia que me deixava incomunicável. Bebia um morno café com leite, comia uma bola de Berlin, ia à internet, comprova jornais e revistas, voltando para o meu isolamento quase santo.

Quem me assassinou para que eu estivesse tão mudo e realizado? Passava as tardes nu como um índio, lendo em voz alta Gunnar Ekelöf e Zhang Kejiu, poetas que foram mestres na arte de descrever os sabores das estações, a neblina que se ergue sobre os lagos à noite, os prazeres simples da vida rural que lhes permitiam comungar com a natureza, num misticismo variado pelas diferentes horas do dia. Lia também as crônicas de Antônio Lobo Antunes e as novelas de Bruce Chatwin: "O luxo impede a mobilidade. Átila bebia por uma caneca de madeira e Gengis-Khan viveu numa tenda coberta de pele até ao fim dos seus dias". Vivia como bactéria no longo areal dourado e espesso, entre o camping e o Bar do Peixe. Enamorei-me da presença do imenso espaço que se abria diante dos olhos.

Contemplava o infinito dominado pelo mar. As águas límpidas e frias, rondando os 17 graus, eram violentas, poderosas, autoritárias. No primeiro dia, quase afoguei-me, gastando cerca de dez minutos para não ser engolido pelas ondas. As características especiais da maré, sobretudo pela proximidade com o cabo Espichel, originam uma forte rebentação. As altas escarpas, os ventos, os ribeiros argilosos, a ausência de construção na zona, contribuem para uma paisagem selvagem e dócil. O acesso à praia se faz a pé, por caminhos recortados entre dunas e escarpas. A barraca estava no alto de uma arriba fóssil, dentro de um bosque. Nas tardes, deitava-me na esteira, privado do perigo, sem inimigos artificiais nem doenças psicossomáticas, cobradores, esnobismo intelectual ou secretos lamentos no coração. A alma quieta, incorpórea, intuitiva. As tardes passavam simplesmente. Um peixe saltava brilhando suas escamas ao sol. O canto dum pássaro alterava a música do verão. A queda das folhas perfumava a luz da tarde e por toda a parte flores silvestres de nomes desconhecidos saciavam a ausência de interesse humano.

Eram momentos de extrema e bela solidão, de harmonia. Ao cair da noite, acendia velas e incensos. São praias de nudismo a 30 km de Lisboa, frequentadas pela classe boêmia da capital. Há no entanto um certo recato, um silêncio consolador. Quando tinha fome, caminhava uma hora até o restaurante mais próximo, comendo deliciosos e frescos pratos de mariscos e peixes robalo, dourada, sargo, ameijôas, choquinhos, mexilhão, camarões; saladas de polvo, ovas, búzios.

Encantava-me também o puxar das redes, os pescadores nativos repetindo a mesma faina secular. Antes do escurecer, voltava para o meu exílio, num vagar suave, sugando a névoa perfumada. Uma vida de andorinha, voando do norte ao sul, e vice-versa. Nestas tardes lentas, os ramos dos pinheiros batiam contra a lona da tenda a dizer-me seja feliz. Os meus olhos acompanhavam o pôr do sol. Não me recordava dos dias, das horas, das vicissitudes, dos meus erros e desenganos.



da Aldeia do Meco, outubro 2001
CRÔNICAS DOS DIAS ERRANTES

(RT, CooJornal, novembro 2001).





Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN

Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países, fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go (Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A Tarde (Salvador, Bahia).


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