16/09/2022
Ano 25 Número 1.288
ARQUIVO
ANTONIO NAHUD |
Antonio Nahud
LEMBRO-ME (ALÉM DO ESQUECIMENTO)
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Lembro-me que foi em noites de lua cheia. Lembro-me da terra vermelha,
do pó de argila alinhado por cima do horizonte, das casas caiadas sublinhadas
a amarelo ou azul, do calor escaldante e do silêncio alentejano. Era um
silêncio cheio de ruídos renegados, grande carros descarregando pesados
equipamentos de sons, os ramos dos eucaliptos levados ao vento, os primeiro
adolescentes empoeirados, a bizarra imponência do "Franklin Freak Show".
Silêncio à beira da morte, agonizando, dizia dentro da minha cabeça.
No
dia seguinte, o espaço do Festival do Sudoeste, o mais célebre do verão
português, a 4 km da aldeia de Zambujeira do Mar, abrigava cerca de trinta mil
jovens, peregrinos dos quatro cantos do país. Disse adeus às horas que corriam
lentas e despreocupadas caminhando pela "cidade de lona". Era um mundo
paralelo, subterrâneo. Panelas sendo lavadas, ignição nos isqueiros para mais
uma ganza (*), folhas pisadas por milhares de pés, a inevitável batucada de
djambé: tam tam tam. Um recinto com uma geografia e bairros próprios. Havia
portões feitos de ramos, havia grafittis: "Encontramos deuses no fundo de um
copo de vodca".
Na entrada do camping, na Rainha dos Cachorros,
ouvia-se death metal. Pertinho, a todo volume, tocava-se o trance, um dos mais
inaudíveis gêneros sonoros da história da música. Vendedores de
cachorro-quente, de bifes fedorentos, de sorvetes. Uma trupe de malabaristas
hipnotizando com bolas de fogo. A euforia coletiva na Herdade da Casa Branca,
na quinta edição do mais sólido e famoso dos muitos festivais que invadiram
Portugal, começou na sexta com a esmagadora presença de uma voz poderosa: P J
Harvey. Look bruxa moderna, ela surgiu em palco de vestido negro justo e botas
longas de salto alto. Atuou durante 70 minutos, numa viagem pelos seus mais
diversos álbuns e momentos, com canções como "Down by the water" e "Angeline".
Polly Jean Harvey é uma das figuras de referência natural do rock feminino de
90, um rock de tons sujos e sensibilidade autoral, se aproximando bastante da
sonoridade de Patti Smith. Na mesma noite, a multidão delirou com os Placebo e
seu cenário geométrico. Ainda assim, o que me vem à memória com mais nitidez é
o rosto expressivo de um homem belíssimo, deitado no gramado, logo após o
concerto dos Divine Comedy, no sábado. Charro (*) na mão, abanando a cabeça
como um headbanger metaleiro, eu estava em transe com o humor e o talento de
Neil Hannon, o divertido vocalista dos Divine Comedy. Ouvi-lo cantar "The
Perfect Love Song" foi inesquecível. O grupo mostrou ter vasta multidão de
fiéis, as pessoas gritavam e assobiavam depois do espetáculo, pedindo mais uma
canção. Então vi o estranho solitário e caminhei em sua direção para o poder
ver mais de perto. Ao passar, percebi que estava mais drogado do que tinha
suposto. Não porque o rosto tivesse desfigurado, era mesmo um desses rostos
imaculados, ambiguamente imunes à mediocridade destes tempos rápidos e vazios.
Havia uma beleza quase mítica, que lhe incendiava a pele. Regressei a barraca
de cerveja, do outro lado do gigantesco gramado, tirei minha garrafinha
escocesa do bolso, tomei três tragos seguidos, e abri o caderno de anotações.
As pessoas passavam falando dos Divine Comedy. Eu precisava escrever
um poema imediatamente, que poderia ser intitulado Ganimedes. Aliás, as
palavras que em mim ressoavam não eram palavras, antes uma série de sensações
psicodélicas. O meu sangue parecia hesitar em circular. Então vi a gigantesca
lua cheia e sob ela, o "estranho", caminhando lento mas decididamente. Era
alto, muito alto, magro, e eu não tirei os olhos dele. Ele caiu, levantou-se,
e eu não fiz qualquer movimento. Sentou-se ao meu lado e pediu que eu dissesse
de onde ele me conhecia. Eu nada respondi, e queria falar com ele, disse para
mim. Falar, sem mais, fora do festival, fora desta escrita, fora do mundo.
Fixei com precisão os cabelos pesados e pretos contornando o rosto e os olhos
semi-fechados que, visto daquele ângulo, trazia a sombra de desencanto. "Não
tenho amigos. A gente normalmente é falsa comigo. Por isso, prefiro falar com
desconhecidos, contar meus segredos e ouvir o que o outro tem para dizer, pois
sei que não há necessidade de mentiras, afinal não nos veremos nunca mais",
disse-me. O som da sua voz tinha a cor do paraíso. Fumamos vários charros,
contamos com crises de risos as histórias das nossas vidas, bebemos um bocado,
caminhamos abraçados sem enxergar ninguém, bailamos na tenda de dança e, duas
horas depois do nosso encontro, poupando o meu embaraço e o dele, nos perdemos
no "Freak Show". "Eu sou de Sintra. Agora diz-me que não restará nada de mim
em sua memória, nem mesmo uma imagem". Foram suas últimas palavras. Não
contestei-as, fugindo para o aglomerado de palhaços exibindo entranhas de
pano, barbies com cabeças reptilizadas, frascos para conservar embriões de
bichinhos de pelúcia mutantes. Olhei-o de longe e ele procurava-me; havia
agonia nos seus gestos. Deixei o circo tentando guardar algumas de suas
confissões: "Sou modelo. É uma profissão de merda. Não suporto o culto à
beleza". Lembro-me de me ter dito para não ter medo da brancura da solidão. "A
solidão é melhor do que qualquer parceiro", completou. Já não tenho medo da
solidão.
Acordei com o clarão vital do sol, massacrando sem piedade os
seres que deambulavam. Comprei papéis de arroz na tenda de artesanato, tomei
um banho gélido na barragem para animar o esqueleto e escrevi sobre alguns
músicos que me impressionaram: o ugandês Geoffrey Oryema, a voz suave e
intimista de Alison Goldfrapp, os Snaker Pimps, o Dr. Frankwenstein, o
conceito revolucionário de espetáculo dos norte-americanos Flamingo Lips,
juntando música, teatro, televisão e cinema num todo coerente, e corajosa Rita
Cardoso, de uma bonita voz lembrando Adriana Calcanhoto.
Decepcionaram-me o argelino Khaled e os veteranos e aborrecidos UB 40.
Seguindo a prática do FLU (Faz Lá UM), fiz um, acompanhando os membros da
tribo metálica chegando no fim-da-tarde. Todos diferentes e quase todos
iguais. No palco dedicado a "world music", que não entendo bem o que significa
(afinal de que planeta é a música do palco principal?), pirei com o reggae do
Cidade Negra. Como acreditar que estava vendo uma das minhas bandas favoritas
no agosto alentejano? Fui ver o péssimo "Orfeu" de Carlos Diegues para
acompanhar o trabalho (ruim) de Tony Garrido. Comprei o disco, e gosto dele. O
ritual metálico dos Sepultura, já sem o carismático vocalista Max Cavalera,
era de bom ambiente e de uma tranquilidade cheia de energia física. Derrick
Green, a nova voz potente, finalizou: "Portugal, você é fixe(*) pra caralho!".
Segui para a tenda de dança onde o dj John Carter pocava numa
coreografia de luzes e som. Lembrei do homem de olhos quase fechados que eu
não havia perguntado o nome. "Agora diz-me que não restará nada de mim em sua
memória, nem mesmo uma imagem". Eu não havia recordado-o durante o dia
inteiro. A minha memória aceitava o desvanecimento do momento mágico a medida
que o encanto caminhava para se perder nela. Senti um súbito frio nas palmas
das mãos. Na altura, a lua soberba me pareceu triste. Talvez lhe tivesse
falado no nosso jogo sobre a melancolia da lua, e ele sobre a noite seguinte,
a que viria, a última noite, separados pela multidão de rostos na
semi-escuridão, sem nenhuma imagem concreta. Porque as imagens existem como
sinais de uma nova paisagem de desejos. Os desejos que nascem da recordação,
das imagens.
Senti-me indefeso como o Lenny (Guy Pearce) do
inteligente "Memento" (2000) de Christopher Nolan. Deveria anotar sensações,
fotografar pedaços de corpos, gravar frases na pele, fazer um mapa da
situação. Lembro-me da felicidade contida, inimiga de todas as exuberâncias,
quando ele passou o longo braço no meu pescoço e seguimos conversando
misturando assuntos, colocando nomes com cidades, datas e situações
improváveis. A conversação não era importante. Ele não acreditava na simples
ideia de que as imagens desse encontro inventado representassem algum modo de
sobrevivência da sua próxima existência para mim. Eu tenho dúvidas. Mesmo com
a memória pouco privilegiada, ouço o som dos passos das imagens que passam.
Imóvel no meu gesto consumado, ouço, lá ao fundo, o som da imagem. Fica ali
alguns sete segundos. A lua explode em rutilância, todos os meninos que dançam
têm os olhos semi-fechados como os dele. Todos são ele e são eu. Todos cantam
o refrão:"Nem mesmo uma imagem". São segundos de uma eternidade de quietude e
paz. Olho de forma breve e direta o fulgor dos fiéis do festival. Fecho os
olhos, sem ter mais certeza da veracidade das coisas, caminhando em sentido
inverso do movimento coletivo.
(*)ganza, charro: baseado de haxixe.
(*)fixe: bacana.
de Zambujeira do Mar (agosto 2001)
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja há quatro meses por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia). Sua mais recente entrevista foi com a cantora
portuguesa Dulce Pontes.
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
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