16/07/2022
Ano 25
Número 1.280



 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud
 


VERTIGEM

 

Antonio Nahud - CooJornal


De quem posso seguir critérios esta noite? Onde aprisiono a sagueza para o amor? Quem devo imitar? Violarei a tranquilidade? Eu existo por mim mesmo e para mim mesmo. Seria capaz de esquecer a minha própria existência por algumas horas? Os caminhos levam à personalidade do vagabundo Henry Miller nos sórdidos tempos franceses.

Não estou em Paris, o cenário é o excêntrico Bairro Alto de Lisboa. Traficantes de haxixe, bichas barulhentas provocando costumes, artistas pintados numa atuação perfeita, malabaristas e cuspidores de fogo, gringos bêbados, adolescentes em busca de metamorfoses, marinheiros dignos de atenção, a beleza essencial das mulheres da noite, a elegância dos negros, o influxo do sopro yin e yang, a atividade perpétua do Criador, intenções sexuais.

Acompanhando a comédia humana num bar imundo lotado de jovens portugueses. Vozes, sons, um fado chora a história de um fugitivo e de um coração abandonado. Ninguém parece interessado no sofrimento da melodia. Novamente encanta-me a pureza provinciana lisboeta. Os homens são expressivos e ambíguos como todos os machos do mundo deveriam ser, afinal tudo é fluido no inconsciente. Entre eles, mulheres como espectros, condenadas a uma invisibilidade incrível. Eu me pergunto porque as mulheres lusas são tratadas como reprodutoras, como bichinhos que querem ter filhos, gostam de cosméticos e outros artifícios, de criticar o seu próprio sexo, de levar a sério revistas de fofocas.

É São Pedro e bebo vinho como água. Minto para os curiosos conversadores, invento nomes e situações, coisas como: "sou fotógrafo de uma revista pornô brasileira", "faço macumbas para o bem da humanidade", "ando me recuperando do vício da cocaína", etc. A mentira comovente, charmosa, é sincera nos seus propósitos como a verdade mais dura. Nunca falo nesta escuridão boêmia de trabalhos literários, entrevistas enfadonhas, sentimentos tumultuados. Afinal o que é a verdade? E se ela tem um perfil, a quem interessa? Esta semana, numa festa popular na cidade de Montijo, com as ruas principais fechadas como currais, a cerveja barata, os sanduíches de carne preparados em braseiros nas calçadas, os touros indomáveis, sádicos espetando-os com lanças, o sangue esguichando, eu comendo chouriço de porco preto e um político falando da importância desse espetáculo infame. Crê que algum político fala a verdade? Nenhum homem público é inocente nem está disposto ao sacrifício, ao sincero, ao honesto, ao corajoso. Quem tiver a possibilidade de entrar no jogo político participará de negociações hipócritas, mentiras.

Suicida, entrei na arena, afundando os pés na areia fofa, e o touro nem quis saber de mim. O meu amigo mineiro Humberto veio ao meu encontro, abraçou-me, épico, eu e ele contra os tolos touros do espírito. Gritei, eufórico: "Aqui estou, Hemingway". Agora deliro numa noite no bairro Alto, perseguindo Henry Miller, e não o encontro no meu interior.

Tomo a goladas um vinho branco forte, a cabeça dá voltas. Seguramente alguém falará do sonho de visitar o Brasil. Às vezes é bom falar do meu desprotegido país para quem nunca foi lá ou nem tem ideia de formas ou do espírito da paisagem. As pessoas se realizam, são informadas de mistérios, amam a revelação de coisas inéditas.

Enquanto escrevo estas palavras inúteis, três homens pedem licença para sentar-se à mesa. São árabes. Um deles acende o meu cigarro e pergunta se sou feliz. Não respondo, e ele, num mal português, diz compreende minha infelicidade: "Esse país é diferente e enfadonhamente tranquilo. Um país bom é aquele onde os homens são homens, como os países árabes ou o Brasil", diz. Divirto-me com a ideia, compreendendo que para dominar um homem é só fazer de conta que aceitamos seus conceitos, ou seja, um truque feminino. Os homens ainda são seres vivos interessantes porque têm a necessidade da transcendência e são meio debochados, quase cínicos, raciocinam honestamente, mesmo quando estúpidos. Um dos árabes confessa que aceitaria compartir um drink comigo na madrugada, porque eu "entendo as pessoas", concluindo que não é gay. E é claro que eu não entendo as pessoas, se eu mesmo nem me entendo. O que ele realmente quis dizer foi: "Haverá possibilidade essa noite de sexo sem compromisso?". É preciso entender nas entrelinhas da hipocrisia.

Abro o livro entre as minhas mãos e leio: "Sexo contém tudo, corpos, almas, significados, provas, purezas, delicadezas, resultados, promulgações, canções, comandos, saúde, orgulho, mistério maternal, leite seminal, todas as esperanças, benefícios, doações, concessões, todas as paixões, belezas, delícias da terra". A sua beleza moura não me comove. Já passei dos trinta anos e procuro acreditar no amor, como um recurso de sobrevivência. Está longe a inocência pervertida de anotar conquistas num caderninho. Penso no companheiro distante com saudade, me masturbo como menino querendo-o, não fodo com outros porque choraria desonrado. Enfeitiçou-me o amor. Nesta noite de desejos proibidos sob a lua cheia, penso no meu amor de quatro, eu passando a língua no seu cu, suavemente até contar todas as pregas do seu orifício e sentir o gosto azedo. Ele tem néctar no rabo, no pau, no cérebro, no coração, no espírito.

Acordo pensando no fim do mundo, sem nenhuma idiotice cotidiana para fazer, somente eu e ele caminhando de mãos dadas respirando a solidão existencial. O amor contaminou-me. Eu que acreditava na infidelidade como vitamina para os relacionamentos, recuso oportunidades extraconjugais.

Assim, exalando sexo reprimido nesta noite de verão em Portugal, bebo vinho, muito vinho, e não sigo adiante com os contos de Rubem Fonseca. Não entendo o prestígio deste autor. Seus textos soam falsos, apressados, como o roteiro de um entretido filme comercial. Hanif Kureishi, um hindu-inglês, escreve também sobre encontros e separações, os dramas masculinos, a banalidade das grandes cidades e sua narrativa é realmente interessante, viva, questionadora. Fonseca repete-se, deveria procurar outros caminhos. Me dá a impressão de um escritor acompanhando a vida através de imagens distanciadas, nunca se envolvendo com complexidades. Vi "Intimidade", de Patrice Chéreau, Urso de Ouro (Melhor Filme) no mais recente Festival de Berlim, baseado em uma novela e contos de Kureishi e me emocionei. Ao entrevistar o diretor para um jornal lisboeta, um francês gay e poderoso no mundo cênico dramático, não entendia as respostas esnobes.

Realmente talento e bom senso dificilmente caminham juntos. Um francês parece incapaz de compreender a existência de vida inteligente além de suas fronteiras. É como a pretensão de Hilda Hilst, numa entrevista para a "Ler": "Eu me acho perfeita em todos os gêneros literários que escrevo". Não é verdade. Ela é um grande poeta, possivelmente o melhor do Brasil, a sua narrativa é confusa, inacabada, com momentos brilhantes, e o seu teatro inédito merece continuar assim, pois é obscuro e aborrecido.

Levanto para ir ao banheiro, derrubo a taça de vinho, quase caio. Os árabes seguram-me como num clip de Madonna. É a entrada triunfal do velho Miller! Vou ao banheiro praticar uma lição ensinada por uma adorável amiga de Ilhéus: depois de beber em excesso, vomita discretamente, tomar um copo d'água, e beber outra vez.

Volto à mesa e os árabes não mais estão. Sentam duas suecas perguntando se falo inglês, faço sinais com as mãos fingindo mudez. Elas não se entusiasmam, como se os mudos não tivessem rola, e vão tomar absinto no balcão.

A seguir, uma açoriana de olhos grandes e verdes: "É incompreensível um brasileiro sozinho", diz. Convida-me para uma festa onde o vento fez a curva, e eu aceito. As noites do bairro Alto são parábolas, poemas, atrocidade da alegria, riso fúnebre, sonhos, mentiras, invenção para ser feliz. Vivo um momento contraditório, acato o amor, e cada vez mais me distancio dele, seduzido pela contemplação e pela nostalgia, enamorado do platonismo do amor. Trato de exprimir um universo inacessível ao homem, sem caminhos que levem ao sublime, como o Olimpo dos orixás, onde só os imortais podem residir, e que o homem comum é incapaz de imaginar. Essa é a vertigem, tal como existe na natureza. Vertigem de precipícios, cavernas, abismos extraordinários das sensações mais desconhecidas. Acompanho conscientemente Henry Miller, a festinha incógnita da açoriana.

Para trás ficam o bairro Alto e seu enxame de personagens bizarros, solitários, atraentes, abstratos, decadentes. Um infinito que não tem rosto. Sinto-me velho, não me importo mais com nada. Lembro a passagem da "Odisseia" em que Ulisses está na gruta e o ciclope pergunta: "Quem é?". E ele responde, "Ninguém, meu nome é Ninguém". É assim que eu me sinto: ninguém, ninguém. Este puto bêbado está correto, Henry?


de Lisboa
(julho 2001)



Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN


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