01/07/2022
Ano 25
Número 1.278



 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud
 


A FESTA -
A memória exata de uma odisséia religiosa sob um céu turquesa


 

Antonio Nahud - CooJornal

Ela vem chegando entre flores que cheiram a carne, a sensualidade. Ruas interditadas, trânsito infernal, dia de calor e inutilidade azul-anil. O bairro do Rio Vermelho numa coreografia bailada por vendedores de dálias e rosas, mães levando os filhos nos braços, ambulantes oferecendo frutas, meninos impondo água de coco e cerveja em lata, senhoras majestosas com turbantes engomados, a alma sapeca de cada um - num colorido belo e violento. As barracas como num sonho e os barcos decorados numa elegância exclusivamente baiana. A poesia dos dias e a grandeza atlântica.

Chega a mãe Janaína, a senhora das águas, enfeitada de corais, turquesas, turmalinas, pérolas e miçangas, um caprichoso vestido azul de cauda cintilante e longa cabeleira negra de algas. Yemanjá, a rainha de todos os mares, é festejada neste dia. Ela está entre nós na mágica e negra Bahia de São Salvador, a terra de Nosso Senhor, onde há quase um século os pescadores, a cada dia dois de fevereiro, a reverenciam e presenteiam com perfumes e flores. A proximidade do mar torna as coisas mais puras. A maré revela pedras emergindo da água. Pedras com ostras, conchas e mariscos. Ela chega, a beleza surge, sorrindo ambiguamente como a Gioconda, insinuando que aceitará as prendas e os amores serão eternos enquanto durem. Todos estão unidos na devoção da princesa de Aioká. Uma voz angélica canta o clássico de Dorival Caymmi: "Dia 2 de fevereiro, dia de festa no mar, eu quero ser o primeiro, a saudar Yemanjá".

A casa da bela e irresistível deusa, onde está o seu peji, e para onde são levados os presentes, exibe uma longa fila desde de manhã cedinho. Um vento cortante, fresco, sopra ao longe. A essência de tudo o que existe. O Largo de Santana enfeitado, os acarajés e os abarás de Dinha consumidos avidamente. Os bares e restaurantes lotados sob um céu de pequenas nuvens dilaceradas e brancas. Uma claridade sem sombras. Depois de depositar as flores, os perfumes, os retratos, os anéis, os colares, os brincos, os espelhos, os pentes, os batons e outros agrados nos cestos que serão levados ao mar enorme, com suas faixas e espumas, o povo dança e canta. Barcos com certos tons de rosa, verdes e azuis. Nomes de barcos que gemem ao sol: Valente, Fiel, Itapoan - dezenas deles. As casas abertas e enfeitadas.

São muitos os almoços: um sarapatel na casa de Gal Costa, uma feijoada na de Zélia Gattai e Jorge Amado ou uma muqueca de peixe na de Caetano Veloso, e assim por adiante. Um entra-e-sai, um vaivém dengoso, uma fonte inesgotável de esperanças, o encontro com amigos, um beijo nos lábios violáceos de um amante, um cheiro de maconha, a dança na rua, sempre em homenagem à Mãe querida. Um calor bom, de sangue que, afinal, é generoso e quente. Todos de branco, muitos com suas guias das cores dos Orixás: o turquesa de Oxóssi, o azul-escuro de Ogum, o vermelho de Iansã, o branco de Oxalá, o preto de Exu. O céu de um azul límpido, o sol luzente inundando luxúria nas águas verdes do mar, na praia, nos feitiços. Peixes prateados acompanham Yemanjá em sua comitiva de águas-vivas, polvos, cavalos-marinhos e estrelas-do-mar.

O pranto desapareceu. O medo desapareceu. Gente de todo o mundo. Com os mestiços baianos, brasileiros de vários sotaques, e requebros sem ritmo de estrangeiros. Um humor transbordante, o riso dos homens. Se muitos devotos vêm para agradecer os pedidos atendidos, outros chegam para conhecer dona Janaína, sua força, sua graça, sua cintilância. Ela chega na luz amarela que colore a areia, a cidade. O dia, o sol, todos esses barcos de pesca, esses ruídos. Ela se chama Nossa Senhora dos Afogados, dona Janaína, Inaê e Yá. Eu tenho lágrimas nos olhos e dou, em agradecimento a sua proteção, as rosas brancas do meu afeto.

Os barcos se preparam para partir, o som dos cânticos, o aroma de alfazema e das folhas de pitanga pisadas na dança, o calor do sol em comunhão com a brisa refrescante. Penso em palavras bonitas, em ervas da primavera: artemisa, chir, retam, drin, néfal, esparto, alma, lazoul. Penso no meu amor catalão, nos seus olhos d'água. Ela parte na procissão marítima. Os presentes são engolidos pelas águas mornas. Ela saúda a ordem do mundo. Yemanjá os recebeu com alegria. No coração de muitos, a boca escancarada de Deus, a certeza da pesca graúda, dos amores sinceros, da paz entre os homens e da fartura aniquilando a miséria. E de repente vê-se. Vê-se. Vê-se que o esplendor da fé está ali, ali nos olhos de mar da gente comovida.


(Abril/2001)


Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN


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