Antonio Nahud
 


MEMORIAL DA ANDALUZIA

 

Antonio Nahud - CooJornal

Nem sempre a primeira impressão é a mais sincera. Eu cheguei nas terras malaguenhas, procurando controlar o dilúvio cor de mel sombrio do meu espírito, e parecia haver tornado sobre os mesmos passos, como um tempo perdido. Na calle Granada, no coração velho de Málaga, dei entrada na plaza de la Merced, chegando a casa onde nasceu Picasso. Longe, envolta em pequenas árvores, vi a fortaleza árabe. Estava na Andaluzia, sentindo a liturgia das idades, o peso das épocas. Na cabeça, invasores romanos e mouros, toureiros, vilarejos de casas brancas, ciganos, festas exuberantes, tapas e xerez – todos os clichês espanhóis. Era noite em Málaga, perdi-me numa multidão religiosa e profana, em plena Semana Santa. Lembrei-me de Rilke caminhando a pé como um vagabundo, do Calvino de “As Cidades Invisíveis”: “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas”. Tudo havia começado com uma obrigação imperativa de partir. Não de volta para o Brasil, mas para algum lugar onde me embriagasse com o passado ou com as visões desconhecidas. Escolhi o rebelde sul espanhol, conhecido falsamente como a fronteira entre a civilização e a bárbarie, entre o progresso e o atraso. Incompreendida e maltratada durante décadas, chamada de pátria de preguiçosos e conformistas. Para mim, depois de algumas visitas, um lugar mágico e infinito. Retalhos de natureza, cidades, pueblos, gente, passagens, monumentos, praias. Uma calma e terna paisagem azul, um sol branco, perfumes de jasmins e madressilvas. Os olhos negros gitanos, a impressionante carnalidade, o flamenco e o seu sentido de vida. A tradição oral e a música popular. Gustave Doré pintando-a oriental e mística, Merimée recordando-a febril nos amores da fatal Carmen e Don José, Lorca assassinado às cinco da manhã em Granada, a sua Granada. Não é uma opereta de sangrenta corrida de touros, retratada por Picasso em “Corrida de Touros” (1901) com cores vivas, sensação de movimento, contraste de luz e sombra, embora a plaza de toros de Ronda, o lar espiritual das touradas, inaugurada em 1785, recordou-me com emoção as gravuras de Goya, relatos de Hemingway e uma insaciável Ava Gardner devorando toureiros. É a terra de montes com perfume de alfazema e ervas silvestres, dos 14 picos com mais de 3 mil metros de altura de Sierra Nevada, das 2 mil cavernas do bairro dos trogloditas em Guadix, dos 180 metros de profundidade da Garganta del Chorro, dos balneários luxuosos e mafiosos da Costa do Sol, do extenso rio Guadalquivir, de 900 quilômetros de costa atlântica e mediterrânica, de azeitonas, embutidos e mariscos. Sevilha é a capital da Andaluzia. O poeta João Cabral de Mello Neto, que foi diplomata na Espanha, escreveu “Sevilha Andando”, em que comenta as semelhanças da região com o Nordeste brasileiro. É uma cidade luminosa e viva, tocada pela satisfação, pelo impulso do exercício da conversa. Numa noite prateada, vi o campanário de la Giralda, desde seus 98 metros de altura; a fácil alegria, os cafés; o gótico duro e áspero da catedral florida por jacarandás. Granada é bela e árabe, dramaticamente árabe. Está numa colina vermelha, e atrás um desnudo e violento jogo de morros. A Alhambra granadina, construída por califas, numa combinação de espaço e luz, fontes e torres, é um tesouro da arquitetura moura. Sua sensualidade sobreviveu a uma tentativa de explosão por Napoleão. Córdoba, a que foi disputada por Roma pelo azeite, trigo e vinho, guarda uma mesquita que tem 12 séculos e representava o poder do Islã na Península Ibérica. Abd al Rahman I construiu o templo original entre 785 e 787. São mais de 850 colunas, arcos e pilares de granito, jaspe e mármore sustentando o teto. No século X chegou a abrigar 17 mil fiéis em oração. Seu nicho sagrado, o Mihrab, é um luxuoso mosaico desenhando formas vegetais e versículos do Corão. Nunca soube muito bem como me comportar em Andaluzia, tudo me parece anil e branco, o impacto me deixa palerma e distante. Só longe de lá consigo enxergá-la vivamente. O antigo bairro judaico em Córdoba, a “Puente Nuevo” sobre um desfiladeiro de 100 metro acima do Tejo, o Convento de São Domingo, as ruas de pedras, grades nas janelas e casas caiadas de Ronda. Zurbarán, Velázquez e Murillo, o pintor das Imaculadas. Rafael Alberti, o Nobel Juan Ramón Jiménez, a música de Camarón e de Manuel de Falla. A arquitetura fenícia, árabe e romana. As cidades encantadas de Úbeda e Baeza, as feiras de Sevilha e Málaga, a Semana Santa, o Corpus, as romarias, a procissão do Senhor de los Gitanos. Os festejos do sul têm raízes em tempos remotos e, ao mesmo tempo, se renovam constantemente. Os andaluzes vivem suas tradições com intensidade. Homenageando “Lawrence da Arábia”, um dos meus filmes favoritos, visitei o árido interior da Almería, que lembra o velho oeste dos EUA, onde o mestre David Lean filmou seu premiado e inesquecível clássico; Anthony Mann e Nicholas Ray, épicos; e Sergio Leone, os lendários western-spaghetti com ciganos representando índios e mexicanos. Indo e voltando sempre de Málaga, na última noite desta viagem alucinada despedi-me da estranha La Manqueta, uma catedral que tem uma das torres inacabadas, levando na cabeça montanhas nevadas, desertos vulcânicos, rios de tons oníricos e ferrosos e também a breguice de Marbella, Fuengirola, Estepona, Benalmádena e Torremolinos. Parti com milhares de imagens gravadas na câmara fotográfica e no coração. Pensei em escrever poesias, crônicas, cartas. Fiz um conto, “Todo Mundo Vale mais do que a sua Vida”, onde um poeta sem esperanças segue uma mulher quase sobrenatural. Depois de visitar, em Málaga, o túmulo de Jane Bowles , a autora de “Duas Damas Bem Comportadas” e mulher de Paul, bêbado de sustos parti para Lisboa, mas aí já é outra história.

 RT, maio/2001





Antonio Naud é escritor , assessor literário
RN


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