16/05/2022
Ano 25
Número 1.272



Antonio Nahud
 


O NÓ MISTERIOSO DAS COISAS

 

Antonio Nahud - CooJornal


"Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro"
(Mário de Sá-Carneiro)



O verão europeu chegou. A literatura e o prazer de verão são parte de uma das condições mais eficazes, mais íntimas, mais simples para se atingir a felicidade. Foi num verão, aos oito anos de idade, quando minha alma era confundida e inocente, que me escondi a devorar "Alice no país das maravilhas" de Lewis Carroll, como numa casa secreta ou num jardim de muros altos, tão altos que ninguém poderia encontrar-me. Esperei o primeiro dia de verão no Seixal, uma simpática cidade do lado do Tejo oposto a Lisboa.

Vejo-me neste momento como uma pessoa inclassificável, verdadeiramente independente em suas opiniões políticas, culturais e sociais, e sendo assim arrisco-me a marginalização absoluta. Cresci na cultura baiana, porém também fui à escola, viajei, vi muito. Sou o resultado de todas essas experiências vitais. A melhor universidade é aprender de forma natural. Quando se vive sem a pretensão de ser alguém importante mais adiante, e se tem vontade de aprender, surge o aprendizado. Uma das minhas descobertas foi não sobreviver sem música. Ouço agora a voz inquietante do senegalês Baaba Maal, da mesma terra de Youssou N'Dour e Ismael Lô. A música clareia a ideias. Penso em cidades e livros. Embora possa passar largas temporadas na solidão das montanhas ou junto do mar, sou em essência um homem da cidade e analiso-as como pessoas. Lisboa é melancólica e provinciana. Madri é uma São Paulo mais sensata. Paris é triste, esnobe, pouco aberta com os estrangeiros. De Londres, todos repetem: "É tão civilizada". Não sei. Ser uma cidade completamente morta, completamente aborrecida, isso é ser civilizado? Penso em voltar ao Brasil, mas me assusto com novidades como o apagão ou a repetição insustentável da violência galopante, do desemprego vil, do culto à ignorância. A maior parte dos nossos líderes são pessoas horríveis mas ainda assim governam-nos. Acredito que apenas os homens horríveis conseguem ganhar a nossa confiança. É trágico mas é verdade. A criação é o que salva a alma. Creio que as pessoas que não criam nada têm uma vida difícil, pois quando não se cria algo a vida não tem sentido.

Algumas pessoas criam um negócio ou trabalho, mas a maioria trabalha em empregos repetitivos que não têm nada a ver com a criação, e se essas pessoas fossem substituídas ninguém daria pela diferença. Leio Anna Akhamátova. Uma poesia simnples, íntima, sofrida e dramática. A poesia russa dança ao sopro de deuses virtuosos: Blok, Óssip Mandelstam, Maiakóvski, Pasternak, Essénin, Marina Tsevtáeva. Vi uma fotografia numa revista portuguesa de um brasileiro que escreve, em fundo sólido de paisagem medieval, tudo luz e sombra, ele em primeiro plano, e aqueles muros de pedra fortalecendo-o. Era na Espanha. Não merecia o dom infernal, não o merecerá nunca. Deus ou Demônio, por que dás tanto a quem não merece nada? Deixá-lo. Não tem assim tanta importância. A inveja é uma estupidez. É verão e estou perto do nó misterioso das coisas. Não se pode ter ao mesmo tempo a noite e o dia. É preciso amar os seres e também a sua infelicidade, os seus sonhos inquietos, a sua loucura e a sua miséria. Nada a temer. Continuo conhecendo caminhos, cidades, os sóis de verão, os livros cúmplices, as palavras pousadas sobre a razão, a esperança de uma formiga em busca de um grão, a luz da beleza e os relâmpagos do amor. Já não temo o perigo, e existe a possibilidade da serenidade. E a serenidade é a essência do pensamento determinada a partir do horizonte em que as coisas se devoram e se abrem a nós.



(RT, junho 2001)




Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN


Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.