16/03/2024
Ano 27
Número 1.359


 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud
 


Pequenas Histórias Sobre o Delírio Peculiar Humano

01. O BESTIALIZADO



 

Antonio Nahud - CooJornal


O seu percurso errante sofre de falta de tempo. Nem consegue escrever. É um poeta capitalista, consumista, estressado. As gavetas transbordam obras inacabadas. O último livro lido nem recorda. Numa exposição de fotografias, um amigo perguntou se apreciara o Borges, presenteado meses antes, e ele respondeu: "Surpreendente. Borges é sempre surpreendente", pedindo desculpas para pegar um quibe na bandeja levada pelo velho garçom no outro lado do salão. Trabalha como funcionário público no horário matutino; à tarde, ensina num cursinho pré-vestibular e, finalizando, vara as noites traduzindo do francês textos técnicos para uma empresa de informática. A televisão sempre ligada, num volume altíssimo. É a sua terapia, a companhia para afastar a solidão e afundá-lo nas sendas das sombras. Não tem tempo para namorar ou ir à praia. Tampouco cuida das plantas no quintal, que morrem secas. Tem pavor a samba, carnaval, malandros, bares, inquietos, modernos e libertários. Na sua cabeça, são assanhados que sufocam a sensibilidade e o frescor poético com rituais aberrantes. O filho adolescente faz de conta que ele não existe, e ao chegar em casa, fumado, tranca-se no quarto, ouvindo Cássia Eller no volume mais alto. Recusa os convites amigáveis ligados ao prazer, só aceitando o lazer profissional. No Dia da Cultura, quando um jovem e entusiasmado poeta gritou, "Deus salve os poetas!", não soube se devia chorar ou sorrir, ficou sem reação, mudo, irreconhecível nos seus propósitos. Poeta, ele? Quem garantia? Onde os desdobramentos e a complexidade? Chegou em casa perturbado com suas vicissitudes, ligou a tevê, tomou um café e logo em seguida, outro, e olhou-se no espelho, vendo no fundo dos olhos, com nitidez cristalina, o velório do poeta. Rasgou as inúmeras páginas de tradução, desligou o aparelho de imagens medíocres, apagou as luzes, acendeu um cigarro e chorou.


de Natal (RN)
RT, Coojornal, março 2002




Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN

Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países, fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go (Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A Tarde (Salvador, Bahia).


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