
16/03/2025
Ano 28 Número 1.407

AFFONSO ROMANO
ARQUIVO
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Affonso Romano de Sant'Anna
A REPÚBLICA DOS HOMENS HONRADOS
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A For Brutus is a honorable man Shakespeare
Mas Sarney é
um homem honrado Ricardo Noblat
JÚLIO CÉSAR, peça de
Shakespeare. Terceiro ato, cena dois.
Marco Antônio: Amigos,
cidadãos, ouçam o que tenho a dizer: Não estou aqui para enterrar o
presidente ou para agradá-lo. O mal e o bem que os homens fazem
sobrevivem a eles. E assim será também com o presidente.
Há
dias, Dom Luciano Mendes levou ao presidente uma denúncia de que havia
corrupção demais no seu governo. Que a corrupção era tanta que estava
superando a do tempo da ditadura.
O presidente deu vários socos
na mesa e afirmou: "Meu governo não é corrupto. Não sou conivente.'' E o
presidente é um homem honrado.
E disse mais o presidente: que a
corrupção é uma erva daninha e que ela se alastrou no seio da própria
Igreja. Dom Luciano então disse que o "caso Ambrosiano" já havia sido
esclarecido pelos tribunais, e Dom Luciano é um homem honrado.
O
presidente disse que quando há comprovação de corrupção ele manda
apurar. E brandiu um processo do BNH tirado da gaveta como exemplo.
Muitos funcionários do BNH, também honrados, vieram a público pedir
ao Presidente, que é um homem honrado, que não os desonre
indiscriminadamente, e que aponte quem são os corruptos do BNH.
Nesse ínterim o presidente teve que viajar ao Uruguai e à Colômbia e, lá
fora, enfrentou outros problemas. Os jornais, contudo, continuaram a
apresentar acusações de corrupção e jogo de influências, que atingem
desta vez não s6 o procônsul Anibal Teixeira, mas a própria família do
presidente e outras pessoas não menos honradas.
Primeiro cidadão:
Acho que essas coisas têm que ser melhor explicadas. Segundo
cidadão: Se essas acusações não forem apuradas o presidente é
conivente. Terceiro cidadão: Receio que o pior ainda está por vir.
Marco Antônio: Se estivesse aqui apenas para seus corações e mentes
pregando a rebelião e o descrédito, estaria fazendo um grande mal ao
presidente, e o presidente é um homem honrado. Quando os pobres
choram, o presidente chora, quando não tem mais jeito troca de
ministros, e quando foi necessário ele fez comícios em praça pública a
favor da democracia. E teve momentos durante o Plano Cruzado em que o
povo o achou o mais honrado de todos.
Primeiro cidadão: Mas queremos
um governo que puna os corruptos. Segundo cidadão: Acabada a
ditadura, que se acabe também com a corrupção. Terceiro cidadão: Se o
presidente quer punir os corruptos basta ler os relatórios do SNI.
Marco Antônio: Não falo para discordar do presidente, que é um homem
honrado. Porém, por três vezes durante as Lupercais o general Ivan
de Sousa Mendes levou-lhe relatórios sobre corrupção direta e indireta
como noticiou a imprensa. Outras vezes o delegado Romeu Tuma também se
referiu a isto. Governadores e outros políticos já abordaram com o
presidente o mesmo assunto, mas o presidente diz que não há corrupção em
seu governo que não seja punida, e o presidente é um homem honrado.
Primeiro cidadão: Queremos um governo duro. Segundo cidadão: Um
governo que bote pra quebrar. Marco Antônio: Meus bons e doces
amigos, sei que vocês não são de madeira nem de pedra e que têm memória.
Tivemos vários governos que vieram para "prender e arrebentar", e só
prenderam os fracos e só arrebentaram os oprimidos. Naquele tempo a
corrupção era possivelmente pior, mas era proibido noticiar. E, no
entanto, aqueles generais e seus ministros eram todos homens honrados.
Primeiro cidadão: É verdade, esta República sempre foi um "mar de
lama"
Segundo cidadão: Não é só na "Nova República", antes também já
era assim. Terceiro cidadão: E no tempo do Império certamente já era
assim. Marco Antônio: Calma, meus caros concidadãos. Sei que é
terrível olhar no chão desse Fórum o cadáver de um sonho. Dizer que a
corrupção sempre existiu tem pouca serventia. É como se, ao ver pegar
fogo em sua casa alguém dissesse: a casa do vizinho também arde em
chamas. Na verdade, lembrar que a casa alheia se incendeia não apaga o
fogo em nossa casa nem nos faz morrer sorrindo em meio às brasas.
Primeiro cidadão: Então, o que faremos? Marco Antônio: Não sei propor
grandes ações nem tenho grande sabedoria. Estou falando apenas de
coração aberto. Só nos resta esperar que um homem honrado venha fazer o
que outros homens honrados não souberam, não quiseram ou não puderam
fazer.
(Revista Rio Total, CooJornal, 14-02-88)
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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