16/04/2025
Ano 28
Semana 1.413







Ernesto Nazareth e a bela "Nicota"


Luiz Antonio de Almeida


Em 2013, encaminhei ao IMS - Instituto Moreira Salles - a última versão, até então, da biografia do compositor e pianista Ernesto Nazareth para sua inserção no site “ernestonazareth150anos”. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa altamente meritória daquela instituição, responsável pelo site, pois ali estava a primeira oportunidade de levar a público todas as informações por mim coletadas desde que iniciei minha pesquisa, em 1976.

Tempos depois, em posteriores revisões, vi-me compelido a reescrever alguns capítulos da biografia, principalmente quando passei a contar com a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. E entre os capítulos por mim refeitos estava aquele intitulado “A Bela Nenê”, no qual havia narrado um episódio envolvendo Nazareth e uma de suas alunas. As mudanças foram muito significativas a começar por um novo título, “A Bela Nicota”, único apelido da jovem que eu pude verdadeiramente comprovar.


Ernesto Nazareth e moça não identificada

Ernesto Nazareth, por volta de 1903, e a imagem de uma moça (não identificada)
da mesma geração de “Nicota”.


Bem, tudo começou quando, em 1984, pelas mãos de Lauro Henrique Alves Pinto, agente do pianista Arthur Moreira Lima, ambos já falecidos, chegou às minhas mãos uma carta com o depoimento da Sra. Nair de Carvalho, relatando lembranças suas e da mãe, Gabriella Cruz Fagundes, aluna e grande amiga do compositor e a quem dedicou a valsa Coração que sente, em 1902. E entre os registros tão bem traçados por dona Nair, encontrei as recordações de uma senhora octogenária se referindo ao Nazareth que conheceu quando menina, estando ele na casa dos cinquenta:

Nazareth era austero, sóbrio, encerrando-se em sua torre de marfim, pouco comunicativo, reservado e como alheado das coisas externas. Se acaso alguma aluna sua ousava “insinuar-se” para o seu lado, procurando “flertar” ou namorá-lo, era o suficiente para que ele não mais voltasse a sua casa, tal como aconteceu a uma jovem viúva de rara beleza, a quem conheci (cujo nome do falecido esposo, figura até hoje em uma das ruas principais de Jacarepaguá). Era tão bela que foi retratada a óleo por Rodolfo Amoedo. Durante o último baile do império, na Ilha Fiscal, foi destaque, por sua elegância e finura, merecendo um rodapé inteiro de um jornal da voga, a seu respeito. Não desejo divulgar-lhe o nome, conheci-a, contudo, bem, amiga que foi de minha família. Teve paixão por Ernesto Nazareth, porém foi por este repudiada; nunca mais tornou a vê-la. Deixou até de receber a mensalidade de suas lições.

Nair Carvalho

CARVALHO, Nair. Depoimento por escrito enviado especialmente
para o autor. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1984.


Mais tarde, ao comentar este assunto com a sobrinha do compositor, Julita Nazareth Siston, também octogenária, ela, recordando-se imediatamente do episódio, me disse que a aluna chamava-se “Nenê”, que se interessou sentimentalmente por seu tio e que, ao ficar viúva muito cedo, herdou razoável fortuna, tornando-se independente... E cobiçada!... Um dia, continuou dona Julita, ao resolver tomar aulas de piano, indicaram o professor Nazareth, por quem se apaixonaria...

Nosso biografado era um homem muito bonito, educado, sensível... Andava sempre bem vestido, com seus ternos de lã e veludo, de corte impecável; gravatas e plastrons de seda, punhos e lenços bordados; cabelos bem cortados e penteados em pastinha. E até seus sapatos, apesar das ruas empoeiradas da cidade, quando não estava usando polainas, mantinham-se reluzentes, pois o músico carregava sempre consigo um paninho só para lustrá-los... Ninguém que observasse aquele dândi caboclo poderia imaginá-lo levando vida de orçamento modestíssimo.

Nazareth era o que se podia dizer: um rapagão. Possuía cabelos negros e lisos, e os penteava cuidadosamente, fazendo um topete alto. Era de estatura regular, de maneiras muito delicadas. O que logo atraía nele era a enorme simpatia que irradiava de sua pessoa. Na rua, falava com toda a gente. Tinha uma palestra agradável, onde se evidenciava o dom especial de se interessar facilmente pelos problemas dos outros...

Almirante (Henrique Foréis Domingues)

DIA (O). Ernesto Nazareth. Edigar de Alencar.
Rio de Janeiro, 24 e 25 de março de 1963.


Algumas semanas depois, conheci pessoalmente dona Nair e, em nosso primeiro encontro, mesmo estando frente a frente comigo, ela não revelou a identidade da moça e nem a tal rua com o nome do marido. Achava por bem evitar embaraços a possíveis descendentes da encantadora criatura.

Por fim, acabei desistindo de procurar pela bela discípula, a mesma que, um dia, ainda segundo dona Julita, aproveitou um momento em que ambos encontravam-se a sós, à frente do piano, para beijá-lo impetuosamente... O mestre, tomado de susto, levantou-se rapidamente e, quase correndo, saiu porta afora para nunca mais voltar e nem receber pelas aulas já ministradas...

Se Ernesto Nazareth “nunca mais tornou a vê-la”, segundo escreveu dona Nair, isso jamais saberemos...

Entretanto, essa história não poderia passar à eternidade sem uma solução.

E foi exatamente por iniciativa da própria protagonista que pude identificar quem era ela, quando, trinta e tantos anos após o ocorrido, deixou seu nome na lista dos presentes à Missa de Sétimo Dia do pianista: “Viúva Cândido Benício”. Sim, lá estavam juntos estado civil e o nome de uma das mais importantes vias de Jacarepaguá.



J ORNAL DO BRASIL. Ano XLIV, n.39.
Rio de Janeiro, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1934.


A partir daí, e mais uma vez com o auxílio da Hemeroteca da BN, foi fácil resgatar alguns dados biográficos e reparar, quem sabe, possíveis injustiças, a começar por trazer à luz seu nome de batismo: Anna Rangel de Vasconcellos.

Apelidada em casa por “Nicota” (o “Nenê” pode ter sido uma confusão de dona Julita), Anna pertencia a uma das famílias de maior projeção entre os bairros de Irajá, Inhaúma e Campinho: os Rangel de Vasconcellos. Era filha do capitão Carlos d’Antas Rangel de Vasconcellos, antigo Intendente (vereador) do Distrito Federal e neta do coronel Rangel de Vasconcellos, cujo nome batizou, por muitos anos, um dos principais logradouros do bairro de Cascadura: a Avenida Coronel Rangel, depois, Avenida Ernâni Cardoso.

Nascida em 5 de junho, do ano aproximado de 1873, casou-se, por volta dos 23 anos, em 10 de junho de 1896, com o médico sanitarista e político Cândido Benício da Silva Moreira (1864/1897), passando a residir na casa de número 2.610, do logradouro que levaria o nome do marido, falecido em 19 de dezembro de 1897. Na condição de antigo morador de Jacarepaguá, cheguei a conhecer (obviamente, sem saber de sua história) o velho casarão que abrigou, até 1999, o Educandário Nossa Senhora da Vitória, e que desapareceu diluído por uma invasão de casas populares.

Residência de Anna e Candido Benício

Residência do casal Anna e Cândido Benício. S/d.


Dessa união nasceu um único filho, Carlos Benício da Silva Moreira (1897/1944).

Anna faleceu aos 19 de maio de 1952, com aproximadamente 80 anos, sendo sepultada ao lado do marido e filho, no Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá.

Nota de falecimento de Nicota

DIARIO DE NOTICIAS. Ano XXII, n.9.065.
Rio de Janeiro, terça-feira, 20 de maio de 1952.


Na última década do século XIX, encontrava-se a bela “Nicota” professora das primeiras escolas femininas do Irajá e Campinho, aposentando-se no magistério. E para aumentar ainda mais a minha surpresa, identifiquei duas composições de sua autoria: a polca “Irajana”, de 1890, e a valsa “Sincera”, de 1893.



GAZETA DE NOTICIAS. Anno XIX, n.59.
Rio de Janeiro, quarta-feira, 1 de março de 1893.


Logo, concluí que se ela chegou a compor e ainda publicar suas músicas, isso leva a crer que as aulas com o professor Nazareth certamente se deram entre 1888 e 1890; portanto, quando ela era solteira e livre para beijar quem quisesse... O único problema é que Ernesto era casado... Daí, o episódio ter ficado na memória das saudosas Julita e Nair...

À Missa do compositor, Anna compareceu acompanhada da sobrinha Carlinda Rangel de Vasconcellos, filha de seu irmão Carlos D'Antas de Vasconcellos. E ao assinar a lista, por livre e espontânea vontade, a bela “Nicota” deixaria registrado para sempre seu nome na história do compositor...

Luiz Antonio de Almeida
Pesquisador da Música Brasileira
Biógrafo de Ernesto Nazareth
RJ







Direção e Editoria
Irene Serra
irene@revistariototal.com.br