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Ernesto Nazareth e a bela
"Nicota"
Luiz Antonio de Almeida
Em 2013, encaminhei ao IMS -
Instituto Moreira Salles - a última versão, até então, da biografia do
compositor e pianista Ernesto Nazareth para sua inserção no site
“ernestonazareth150anos”. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa altamente
meritória daquela instituição, responsável pelo site, pois ali estava a primeira
oportunidade de levar a público todas as informações por mim coletadas desde que
iniciei minha pesquisa, em 1976.
Tempos depois, em posteriores revisões,
vi-me compelido a reescrever alguns capítulos da biografia, principalmente
quando passei a contar com a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. E entre
os capítulos por mim refeitos estava aquele intitulado “A Bela Nenê”, no qual
havia narrado um episódio envolvendo Nazareth e uma de suas alunas. As mudanças
foram muito significativas a começar por um novo título, “A Bela Nicota”, único
apelido da jovem que eu pude verdadeiramente comprovar.

Ernesto
Nazareth, por volta de 1903, e a imagem de uma moça (não identificada) da
mesma geração de “Nicota”.
Bem, tudo começou quando, em 1984, pelas mãos
de Lauro Henrique Alves Pinto, agente do pianista Arthur Moreira Lima, ambos já
falecidos, chegou às minhas mãos uma carta com o depoimento da Sra. Nair de
Carvalho, relatando lembranças suas e da mãe, Gabriella Cruz Fagundes, aluna e
grande amiga do compositor e a quem dedicou a valsa Coração que sente, em 1902.
E entre os registros tão bem traçados por dona Nair, encontrei as recordações de
uma senhora octogenária se referindo ao Nazareth que conheceu quando menina,
estando ele na casa dos cinquenta:
Nazareth era austero, sóbrio,
encerrando-se em sua torre de marfim, pouco comunicativo, reservado e como
alheado das coisas externas. Se acaso alguma aluna sua ousava “insinuar-se” para
o seu lado, procurando “flertar” ou namorá-lo, era o suficiente para que ele não
mais voltasse a sua casa, tal como aconteceu a uma jovem viúva de rara beleza, a
quem conheci (cujo nome do falecido esposo, figura até hoje em uma das ruas
principais de Jacarepaguá). Era tão bela que foi retratada a óleo por Rodolfo
Amoedo. Durante o último baile do império, na Ilha Fiscal, foi destaque, por sua
elegância e finura, merecendo um rodapé inteiro de um jornal da voga, a seu
respeito. Não desejo divulgar-lhe o nome, conheci-a, contudo, bem, amiga que foi
de minha família. Teve paixão por Ernesto Nazareth, porém foi por este
repudiada; nunca mais tornou a vê-la. Deixou até de receber a mensalidade de
suas lições.
Nair Carvalho
CARVALHO, Nair. Depoimento por escrito
enviado especialmente para o autor. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1984.
Mais tarde, ao comentar este assunto com a sobrinha do compositor, Julita
Nazareth Siston, também octogenária, ela, recordando-se imediatamente do
episódio, me disse que a aluna chamava-se “Nenê”, que se interessou
sentimentalmente por seu tio e que, ao ficar viúva muito cedo, herdou razoável
fortuna, tornando-se independente... E cobiçada!... Um dia, continuou dona
Julita, ao resolver tomar aulas de piano, indicaram o professor Nazareth, por
quem se apaixonaria...
Nosso biografado era um homem muito bonito, educado,
sensível... Andava sempre bem vestido, com seus ternos de lã e veludo, de corte
impecável; gravatas e plastrons de seda, punhos e lenços bordados; cabelos bem
cortados e penteados em pastinha. E até seus sapatos, apesar das ruas
empoeiradas da cidade, quando não estava usando polainas, mantinham-se
reluzentes, pois o músico carregava sempre consigo um paninho só para
lustrá-los... Ninguém que observasse aquele dândi caboclo poderia imaginá-lo
levando vida de orçamento modestíssimo.
Nazareth era o que se podia
dizer: um rapagão. Possuía cabelos negros e lisos, e os penteava cuidadosamente,
fazendo um topete alto. Era de estatura regular, de maneiras muito delicadas. O
que logo atraía nele era a enorme simpatia que irradiava de sua pessoa. Na rua,
falava com toda a gente. Tinha uma palestra agradável, onde se evidenciava o dom
especial de se interessar facilmente pelos problemas dos outros...
Almirante (Henrique Foréis Domingues)
DIA (O). Ernesto Nazareth. Edigar
de Alencar. Rio de Janeiro, 24 e 25 de março de 1963.
Algumas semanas
depois, conheci pessoalmente dona Nair e, em nosso primeiro encontro, mesmo
estando frente a frente comigo, ela não revelou a identidade da moça e nem a tal
rua com o nome do marido. Achava por bem evitar embaraços a possíveis
descendentes da encantadora criatura.
Por fim, acabei desistindo de procurar
pela bela discípula, a mesma que, um dia, ainda segundo dona Julita, aproveitou
um momento em que ambos encontravam-se a sós, à frente do piano, para beijá-lo
impetuosamente... O mestre, tomado de susto, levantou-se rapidamente e, quase
correndo, saiu porta afora para nunca mais voltar e nem receber pelas aulas já
ministradas...
Se Ernesto Nazareth “nunca mais tornou a vê-la”, segundo
escreveu dona Nair, isso jamais saberemos...
Entretanto, essa história não
poderia passar à eternidade sem uma solução.
E foi exatamente por iniciativa
da própria protagonista que pude identificar quem era ela, quando, trinta e
tantos anos após o ocorrido, deixou seu nome na lista dos presentes à Missa de
Sétimo Dia do pianista: “Viúva Cândido Benício”. Sim, lá estavam juntos estado
civil e o nome de uma das mais importantes vias de Jacarepaguá.

J
ORNAL DO BRASIL. Ano XLIV, n.39. Rio de Janeiro, sexta-feira, 16 de
fevereiro de 1934.
A partir daí, e mais uma vez com o auxílio da
Hemeroteca da BN, foi fácil resgatar alguns dados biográficos e reparar, quem
sabe, possíveis injustiças, a começar por trazer à luz seu nome de batismo: Anna
Rangel de Vasconcellos.
Apelidada em casa por “Nicota” (o “Nenê” pode ter
sido uma confusão de dona Julita), Anna pertencia a uma das famílias de maior
projeção entre os bairros de Irajá, Inhaúma e Campinho: os Rangel de
Vasconcellos. Era filha do capitão Carlos d’Antas Rangel de Vasconcellos, antigo
Intendente (vereador) do Distrito Federal e neta do coronel Rangel de
Vasconcellos, cujo nome batizou, por muitos anos, um dos principais logradouros
do bairro de Cascadura: a Avenida Coronel Rangel, depois, Avenida Ernâni
Cardoso.
Nascida em 5 de junho, do ano aproximado de 1873, casou-se, por
volta dos 23 anos, em 10 de junho de 1896, com o médico sanitarista e político
Cândido Benício da Silva Moreira (1864/1897), passando a residir na casa de
número 2.610, do logradouro que levaria o nome do marido, falecido em 19 de
dezembro de 1897. Na condição de antigo morador de Jacarepaguá, cheguei a
conhecer (obviamente, sem saber de sua história) o velho casarão que abrigou,
até 1999, o Educandário Nossa Senhora da Vitória, e que desapareceu diluído por
uma invasão de casas populares.

Residência do casal Anna e
Cândido Benício. S/d.
Dessa união nasceu um único filho, Carlos Benício
da Silva Moreira (1897/1944).
Anna faleceu aos 19 de maio de 1952, com
aproximadamente 80 anos, sendo sepultada ao lado do marido e filho, no Cemitério
do Pechincha, em Jacarepaguá.

DIARIO DE NOTICIAS. Ano XXII,
n.9.065. Rio de Janeiro, terça-feira, 20 de maio de 1952.
Na última
década do século XIX, encontrava-se a bela “Nicota” professora das primeiras
escolas femininas do Irajá e Campinho, aposentando-se no magistério. E para
aumentar ainda mais a minha surpresa, identifiquei duas composições de sua
autoria: a polca “Irajana”, de 1890, e a valsa “Sincera”, de 1893.

GAZETA DE NOTICIAS. Anno XIX, n.59.
Rio de Janeiro, quarta-feira, 1 de março de 1893.
Logo, concluí que se ela chegou a compor e ainda publicar
suas músicas, isso leva a crer que as aulas com o professor Nazareth certamente
se deram entre 1888 e 1890; portanto, quando ela era solteira e livre para
beijar quem quisesse... O único problema é que Ernesto era casado... Daí, o
episódio ter ficado na memória das saudosas Julita e Nair...
À Missa do
compositor, Anna compareceu acompanhada da sobrinha Carlinda Rangel de
Vasconcellos, filha de seu irmão Carlos D'Antas de Vasconcellos. E ao assinar a
lista, por livre e espontânea vontade, a bela “Nicota” deixaria registrado para
sempre seu nome na história do compositor...
Luiz Antonio de Almeida
Pesquisador da Música Brasileira Biógrafo de Ernesto Nazareth RJ
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