The Beatles: Get Back
Cândido Luiz de Lima Fernandes
Uma das maiores
características dos Beatles é o quanto a banda conseguiu fazer em tão pouco
tempo: a legião de fãs que os acompanhava, a quantidade de discos lançados,
shows, aparições públicas e muito mais. Tudo isso foi feito em apenas dez anos,
que acabaram marcando a vida de milhões de pessoas e até hoje ressoa de geração
em geração. Seguindo essa linha, não é nada equivocado um documentário sobre a
banda ter uma duração, produção e dedicação à altura. The Beatles: Get Back
é um documentário musical sobre o grupo de rock britânico, lançado na plataforma
de streaming Disney+ em novembro de 2021. Dirigido por Peter Jackson, o filme
utiliza imagens captadas em janeiro de 1969 por Michael Lindsay-Hogg, incluindo
várias sequências inéditas feitas durante os ensaios e as sessões de gravação do
álbum Let It Be.
Quando The Beatles: Get Back foi anunciado, a recepção
dos fãs foi bem calorosa: Peter Jackson, o cineasta neozelandês por trás do
sucesso de “O Senhor dos Anéis” e “O Hobbit”, assumiria o comando de um enorme
acervo de imagens, áudios e documentos do quarteto britânico e traria para as
telas um novo olhar de uma história que merecia ser contada. Visto assim, o
documentário repartido em três longos episódios pode muito bem ser visto como
uma carta de amor dos Beatles para o mundo, sobretudo para os fãs que jamais
reclamariam de quase oito horas de conteúdos sobre a banda que mudou a indústria
musical.
O mais interessante de se assistir em The Beatles: Get Back é
justamente todo o cuidado que Jackson teve com mais de 50 horas de filmagens e
150 horas de gravações em áudio do grupo. Uma enorme gaveta de conteúdo que
agora pode ser visto em uma série bem contada que mostra nos mínimos detalhes os
últimos dias de Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr
juntos.
Por mais que tudo tenha chegado "pronto" nas mãos de Jackson, o
mais encantador para os fãs é justamente essa proposta de proximidade que The
Beatles: Get Back rendeu ao público: o filme (ou minissérie, como o espectador
preferir chamar) não hesita em momento algum mostrar o caos que foi todo o
preparo e ensaios iniciais para o especial de televisão que a banda realizava
fazer; entre divergências criativas, estúdios com má acústica e desorganização
na produção. Os fãs acompanham de perto uma cansativa rotina da banda.
A
produção, no entanto, pode frustrar aqueles que colocam a banda num pedestal
justamente por essa transparência. É possível, no primeiro episódio, ver como os
demais integrantes ficam incomodados (e até agindo com indiferença) diante da
iniciativa de Paul de organizar melhor a dinâmica dos ensaios, que até então
estavam desorganizados e pouco produtivos. A primeira parte, inclusive, acaba de
forma bem frustrante: com George abandonando a banda e partindo para Liverpool,
deixando os três colegas de mãos atadas.
A paz parece ser retomada
justamente no capítulo mais longo do documentário, em que uma reunião é
realizada e a banda segue com os planos. A atmosfera agora é outra em Londres:
há diversão, entusiasmo e até mesmo faíscas criativas num novo estúdio em
Londres, entrando totalmente em contraste com o que foi mostrado na primeira
parte do documentário. Peter Jackson faz isso: essa intensidade que faz parte de
ser um músico, de integrar uma banda — tudo isso é entregue no documentário,
essa imersão que chega sem pedir licença para o público, longe do glamour e das
massas de fãs ao redor do quarteto.
O documentário aborda conflitos que
surgiram na bem-sucedida carreira dos Beatles. As rusgas existiam, mas o grupo
seguia produzindo coletivamente, criando pérolas e hits imbatíveis ao mesmo
tempo em que se divertiam e mostravam como gostavam uns dos outros.
É uma
obra sensível, que além de rever o final dos Beatles com outra luz, ainda rompe
mitos que sempre pairavam sobre a história da banda. Quais? Vamos mostrar alguns
deles.
1) Yoko Ono foi responsável pelo fim dos Beatles?
Num dado momento
do seriado, Paul McCartney reconhece que John Lennon nem pestanejaria caso
tivesse de escolher entre ficar com os Beatles ou com Yoko Ono – e apesar de não
transparecer nenhum rancor específico ligado à nova namorada de John, ele
inclusive ironiza: “Imagine que daqui a 50 anos as pessoas falassem que os
Beatles acabaram porque a Yoko sentou em um amplificador”.
Desde a morte
do empresário Brian Epstein, em 1967, aos poucos novos nomes entrariam para o
time. E foi aí que John começou a trazer Yoko para as gravações. Os outros três
beatles não ficaram muito animados com aquela nova presença, mas, como se vê em
The Beatles: Get Back, aos poucos eles se acostumaram com ela a ponto de ela não
ser um estorvo. Pelo contrário, ela sentava ao lado de John tranquilíssima e às
vezes nem prestava atenção no que o grupo estava fazendo. Em vários momentos,
ela conversa com outras pessoas e até participa de uma jam session ao lado de
John, Paul e Ringo, num dos vários momentos de descontração do seriado.
Yoko sempre foi vilanizada principalmente pelos jornalistas norte-americanos na
época, que faziam piadas machistas e racistas sobre a namorada de John, e pelos
fãs, que não suportavam a ideia de um dos Beatles ter terminado um casamento
para ficar com alguém que parecia estar o usando como escada para o sucesso.
Yoko não precisava disso: já era uma artista publicada e reconhecida antes
mesmo dos Beatles começarem a fazer sucesso e é notória a influência que ela
teve em John a apresentá-lo para outras formas de expressão artística. Como se
vê em Get Back, a tensão entre os Beatles era maior por causa de sua convivência
como um grupo do que por conta da influência de qualquer outro agente externo.
2) John Lennon queria sair dos Beatles?
Embora Lennon realmente não
estivesse mais interessado naquela rotina com seus companheiros de banda, ele
sabia que os Beatles eram seu ganha-pão e, pelo menos até o início de 1969, não
havia cogitado sair do grupo que tinha fundado quinze anos antes, em Liverpool,
na Inglaterra.
Acontece que naquele período John Lennon começou a usar
heroína, o que aos poucos o tornou alheio ao resto da banda – e de qualquer
outro assunto. Seu vício em heroína não é mencionado em The Beatles: Get Back,
embora ele seja sempre o integrante da banda que chega mais tarde e às vezes
parece absorto em relação a tudo que estava acontecendo. Mas ele só cogita mesmo
sair da banda às vésperas do lançamento de Abbey Road, no final de 1969, quando
é demovido por Paul McCartney.
3) Paul McCartney era o dono da banda?
Após a morte de Brian Epstein, a disputa entre John Lennon e Paul McCartney
torna-se mais acirrada pela necessidade de Paul se provar para John que foi o
fundador da banda. A partir de 1967 ele passa a sugerir rumos que o grupo
poderia seguir, mas nem sempre era ouvido.
Lennon ainda era visto pelos
outros como o principal integrante da banda e isso pode ser percebido pela forma
que ele se comporta – e como os outros o acompanham – no último show, no terraço
da Apple. Mas o pragmatismo profissional de Paul é evidente – e The Beatles: Get
Back mostra isso em diversos momentos. É o baixista quem mais insiste no
projeto, que mais puxa novas canções, que mais instiga a participação dos
outros.
Mas vê-lo tocando Strawberry Fields Forever, uma das canções mais
confessionais de John Lennon, é um claro indício de como Paul respeitava John.
4) George Harrison odiava Paul McCartney?
Uma das cenas mais
clássicas do documentário Let it Be, de 1970, mostra Harrison esbravejando
contra Paul, dizendo que “eu toco o que você quiser e se você quiser eu não
toco”. O clima insustentável do corte do filme original é dissipado na versão
extensa, mostrada pela primeira vez em The Beatles: Get Back – a discussão
realmente aconteceu, mas, depois disso, eles seguiram gravando, mais um dia de
trabalho.
Contudo, George Harrison não estava mais se sentindo à vontade
nos Beatles. Não foi o primeiro beatle a deixar a banda – este foi Ringo, no ano
anterior - mas sua saída durante as gravações de Let it Be deixou uma cicatriz
que não fechou direito.
A insatisfação de George era mais em relação a
Paul McCartney devido à forma como ele impunha suas ideias para os outros – algo
que também irritava Ringo Starr – e isso fica claro quando ouvimos a conversa
entre John e Paul após George decidir voltar para a banda. John e Paul discutem
firme, mas sem nunca pegar pesado e John faz Paul perceber o quanto ele incomoda
os outros integrantes com seu estilo de fazer música.
A preocupação dos dois
com George é a de dois irmãos mais velhos com o caçula. E por mais que George se
irritasse com Paul, ele também nunca escondia sua admiração por ele.
5)
Ringo Starr não estava nem aí para os Beatles?
Ringo é o beatle que mais
sofre com o fim dos shows, em 1966. Especificamente por não ser um compositor –
embora tivesse sempre uma canção por disco, ela quase sempre era de John e de
Paul ou de algum outro compositor que o grupo gostava.
Sem shows e com os
Beatles dedicados ao estúdio, Ringo tinha pouco o que fazer. É clássica sua
declaração sobre sua melhor lembrança das gravações de Sgt. Pepper’s foi o fato
de ter aprendido a jogar xadrez, porque cada vez acrescentava elementos de
percussão às canções dos outros três mais do que tocar bateria.
E a falta
de traquejo de Paul McCartney para passar os trechos de bateria que havia
imaginado para suas músicas (e Paul é um ótimo baterista, tanto que algumas
canções dos Beatles contam com ele no instrumento) criava uma animosidade entre
os dois.
Ele gostava de tocar com o grupo e isso é nítido em Get Back.
Quando posto no papel de instrumentista em vez de criador – quando o grupo para
de criar canções coletivamente - Ringo aos poucos vai procurando o que fazer
para além do grupo. Tanto que logo expande sua carreira para o cinema ainda
quando era integrante da banda. O que ele não gostava era da rotina de estúdio
sem que houvesse a possibilidade de tocar ao vivo.
6) O documentário mostra o
fim do grupo
A primeira versão daquelas cenas, que originaram o filme
Let it
Be, lançado em 1970, foram marcadas como sendo o período em que os Beatles
chegaram ao fim, principalmente por conta da edição das imagens capturadas pela
equipe de Michael Lindsay-Hogg.
The Beatles: Get Back nos mostra inclusive
que o diretor já chegou no estúdio com essa meta: percebendo a animosidade entre
os quatro integrantes, ele queria entrar para a história como o sujeito que
registrou o fim dos Beatles. Ele tem inclusive uma discussão ridícula com Linda
Eastman, que ainda não havia se casado com Paul, sobre o fato de ele ser mais fã
dos Beatles do que ela.
O fato é que ele conseguiu o que queria ao lançar
o fim após o anúncio do final da banda, algo que só aconteceu no primeiro
semestre de 1970, mais de um ano depois das gravações que deram origem ao
documentário.
Let it Be é um filme triste e desgastante e distorce o clima entre os Beatles em
janeiro de 1969 para dizer que foi ali que a banda terminou. O término oficial
acontece no dia 10 de abril de 1970, no dia seguinte após Paul McCartney
distribuir cópias de seu primeiro disco solo para jornalistas, quebrando um
acordo que tinha com os outros integrantes da banda.
Mas a última vez que o
grupo se reuniu voluntariamente para falar sobre composições foi após o retorno
da viagem à Índia, no final de maio de 1968, na casa de George Harrison, em
Escher, subúrbio de Londres, para rascunhar o que se tornaria o Álbum Branco.
O projeto The Beatles: Get Back foi encarado como um trabalho pelos quatro, que
já não tinham o ímpeto de mostrar músicas uns para os outros. O período de
gravação do “Álbum Branco” os afastou ainda mais até que Ringo deixasse a banda
em setembro de 1968, para retornar uma semana depois.
Irônico é que
Lindsay-Hogg grava o exato momento em que Paul percebe que os Beatles vão acabar
– com seus olhos enchendo-se de lágrimas, quando, após a saída de George
Harrison, John Lennon também não vai ao estúdio gravar. Mas essa imagem só surge
no filme de Peter Jackson – e é um dos momentos mais emocionantes da série.
The Beatles: Get Back é um acontecimento para a história da música popular,
porque traz à luz uma quantidade enorme de material inédito dos Beatles. E isso
porque alcança todos os seus objetivos; mergulhar o espectador no estúdio de
ensaio e gravação do grupo mais importante do século XX, observar o processo
criativo da dupla mais fecunda produzida pelo pop. E mostrar ao mesmo tempo suas
complexas relações pessoais: a camaradagem própria de músicos que estavam juntos
desde a adolescência e que haviam vivido algo extraordinário em apenas dez anos,
mas nos quais já se entrevê o desgaste do sucesso e a tendência centrífuga que
os levará a se separarem alguns meses depois.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |