História das letras de música (2)
Angélica
Cândido Luiz de Lima Fernandes
Dando sequência à nova série sobre a história das
letras de música do cancioneiro popular brasileiro e de sua importância no
contexto político e cultural do país, a canção aqui apresentada é “Angélica”
(1977), bela e triste composição de Chico Buarque de Hollanda e de Miltinho
(MPB4) em homenagem à estilista Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), mãe do
militante político Stuart Angel Jones e da jornalista Hildegard Angel.
Além
da consagração internacional como estilista de moda, a mineira Zuzu Angel ficou
conhecida pela incansável e incessante busca de seu filho Stuart, militante
político, preso em 14 de abril de 1971. Stuart foi torturado e morto pelo Centro
de Informações da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão e dado como
desaparecido pelas autoridades.
A busca de Zuzu pelas explicações, pelos
culpados e pelo corpo do filho só terminou com sua morte, ocorrida na madrugada
de 14 de abril de 1976, num acidente de carro na Estrada da Gávea, saída do
antigo Túnel Dois Irmãos, na cidade do Rio de Janeiro, posteriormente batizado
com seu nome, “Zuzu Angel”. O Karmann Ghia TC conduzido por Zuzu Angel derrapou
na saída do túnel e saiu da pista, chocou-se contra a mureta de proteção,
capotando e caindo na estrada abaixo, matando-a instantaneamente. Zuzu foi
sepultada no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.
Uma semana
antes do acidente, ela deixara na casa de Chico Buarque de Hollanda um documento
que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse, em que escreveu:. "Se eu
aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu
amado filho", o que foi devidamente comprovado posteriormente.
Segundo Chico
Buarque, “Zuzu foi uma mulher que durante anos depois da morte do filho (Stuart
Angel Jones, preso político em 1971) não fez outra coisa senão se dedicar a
denunciar os assassinos do filho, a reivindicar o direito de saber onde é que
estava o corpo dele. Ela sabia, inclusive, das ameaças que pairavam sobre ela e
dizia que tinha certeza de que se alguma coisa acontecesse com ela a culpa seria
dos mesmos assassinos do filho, que ela citava nominalmente. Ela passava lá em
casa quase semanalmente, mostrando os relatórios todos do trabalho que estava
fazendo aqui e nos Estados Unidos – porque, afinal, o pai do Stuart era
americano – então ela tinha contato com senadores americanos, mesmo os
ultraconservadores, que por se tratar de filho de um cidadão americano, eram
simpáticos ao clamor desta mulher. Ela chegou a entregar a documentação ao
Kissinger pessoalmente, no Hotel Sheraton, quando ele esteve aqui.
Clandestinamente ela furou o bloqueio e lhe entregou uma pasta com os documentos
todos que ela tinha e distribuía entre as pessoas em quem confiava. No dia em
que aconteceu o acidente, ela tinha acabado de passar lá em casa. Aquilo me
chocou muito.” Em 1998, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos
julgou o processo 237/96 e reconheceu-a como pessoa que, "por ter participado,
ou por ter sido acusada de participação, em atividades políticas, tenha falecido
por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas". Em seu
relatório final, publicado em 2007, a Comissão inseriu depoimentos de duas
testemunhas oculares do acidente, que afirmaram ter visto o carro de Zuzu ter
sido fechado por outro e jogado fora da pista, caindo de uma altura de cerca de
cinco metros.
Passemos à análise da letra da canção “Angélica”: “Quem
é essa mulher Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu
filho Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher Que canta sempre
esse lamento?
Só queria lembrar o tormento Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar
meu anjo E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher Que canta como
dobra um sino?
Queria cantar por meu menino Que ele já não pode mais
cantar
Quem é essa mulher Que canta sempre esse estribilho?
Só queria
embalar meu filho Que mora na escuridão do mar”
Stuart, depois de ter sido
torturado, foi arrastado por um jipe, com a boca no cano de descarga. Seu corpo
foi jogado no mar. É por isso que a letra retrata a dor de uma mulher que só
queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
IRENE SERRA
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