Ano 24
Semana 1.240



 
ARQUIVO de MÚSICA

 



16 de setembro, 2021

História das letras de música (2)

Angélica


Cândido Luiz de Lima Fernandes




Dando sequência à nova série sobre a história das letras de música do cancioneiro popular brasileiro e de sua importância no contexto político e cultural do país, a canção aqui apresentada é “Angélica” (1977), bela e triste composição de Chico Buarque de Hollanda e de Miltinho (MPB4) em homenagem à estilista Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), mãe do militante político Stuart Angel Jones e da jornalista Hildegard Angel.

Além da consagração internacional como estilista de moda, a mineira Zuzu Angel ficou conhecida pela incansável e incessante busca de seu filho Stuart, militante político, preso em 14 de abril de 1971. Stuart foi torturado e morto pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão e dado como desaparecido pelas autoridades.

A busca de Zuzu pelas explicações, pelos culpados e pelo corpo do filho só terminou com sua morte, ocorrida na madrugada de 14 de abril de 1976, num acidente de carro na Estrada da Gávea, saída do antigo Túnel Dois Irmãos, na cidade do Rio de Janeiro, posteriormente batizado com seu nome, “Zuzu Angel”. O Karmann Ghia TC conduzido por Zuzu Angel derrapou na saída do túnel e saiu da pista, chocou-se contra a mureta de proteção, capotando e caindo na estrada abaixo, matando-a instantaneamente. Zuzu foi sepultada no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.

Uma semana antes do acidente, ela deixara na casa de Chico Buarque de Hollanda um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse, em que escreveu:. "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho", o que foi devidamente comprovado posteriormente.

Segundo Chico Buarque, “Zuzu foi uma mulher que durante anos depois da morte do filho (Stuart Angel Jones, preso político em 1971) não fez outra coisa senão se dedicar a denunciar os assassinos do filho, a reivindicar o direito de saber onde é que estava o corpo dele. Ela sabia, inclusive, das ameaças que pairavam sobre ela e dizia que tinha certeza de que se alguma coisa acontecesse com ela a culpa seria dos mesmos assassinos do filho, que ela citava nominalmente. Ela passava lá em casa quase semanalmente, mostrando os relatórios todos do trabalho que estava fazendo aqui e nos Estados Unidos – porque, afinal, o pai do Stuart era americano – então ela tinha contato com senadores americanos, mesmo os ultraconservadores, que por se tratar de filho de um cidadão americano, eram simpáticos ao clamor desta mulher. Ela chegou a entregar a documentação ao Kissinger pessoalmente, no Hotel Sheraton, quando ele esteve aqui. Clandestinamente ela furou o bloqueio e lhe entregou uma pasta com os documentos todos que ela tinha e distribuía entre as pessoas em quem confiava. No dia em que aconteceu o acidente, ela tinha acabado de passar lá em casa. Aquilo me chocou muito.”

Em 1998, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos julgou o processo 237/96 e reconheceu-a como pessoa que, "por ter participado, ou por ter sido acusada de participação, em atividades políticas, tenha falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas". Em seu relatório final, publicado em 2007, a Comissão inseriu depoimentos de duas testemunhas oculares do acidente, que afirmaram ter visto o carro de Zuzu ter sido fechado por outro e jogado fora da pista, caindo de uma altura de cerca de cinco metros.

Passemos à análise da letra da canção “Angélica”:

“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?

Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?

Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?

Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?

Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?

Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar”

Stuart, depois de ter sido torturado, foi arrastado por um jipe, com a boca no cano de descarga. Seu corpo foi jogado no mar. É por isso que a letra retrata a dor de uma mulher que só queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar.


Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com
 





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Direção e Editoria
IRENE SERRA