01/08/2021
Ano 24

Semana 1.232



 
ARQUIVO de MÚSICA

 



História das letras de música (1)

O Bêbado e a Equilibrista

 



Cândido Luiz de Lima Fernandes



Iniciamos nesta edição uma nova série sobre a história das letras de música do cancioneiro popular brasileiro e de sua importância no contexto político e cultural do país. A letra escolhida para inaugurar esta seção foi “O Bêbado e a Equilibrista”, canção composta por João Bosco e Aldir Blanc, e interpretada por Elis Regina em seu LP Essa Mulher, de 1979.

Em 25 de dezembro de 1977, morria na Suíça o genial comediante e cineasta inglês Charles Chaplin. No Brasil, o cantor, violonista e compositor João Bosco sentiu a necessidade de homenagear o artista e, entre o Natal e o Ano Novo, começou a rascunhar um samba que remetia ao personagem mais famoso de Chaplin, o vagabundo Carlitos. E aí resolveu chamar o seu parceiro de fé, Aldir Blanc, para pôr letra na sua criação.

Só que nas mãos de Aldir, o samba acabou tomando outros rumos, vindo a se tornar “O bêbado e a equilibrista”, um clássico da música popular brasileira e hino informal sobre o período da anistia e do declínio da Ditadura Militar no Brasil, sendo mesmo chamado de Hino da Anistia, ainda que tenha sido composto antes da aprovação da Lei da Anistia, de 1979.

Em depoimento à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), anos mais tarde, Aldir Blanc contou que “o João me chamou na casa dele e disse que havia feito um samba, cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com 'Smile' (tema do filme 'Tempos modernos'), propositalmente construídas para que homenageássemos Charlie Chaplin. Só que, casualmente, encontrei o cartunista Henfil e o violonista e compositor Chico Mário, que só falavam do mano que estava no exílio. Cheguei em casa, liguei para o João e sugeri que criássemos um personagem chapliniano, que, no fundo, deplorasse a condição dos exilados. Não era a ideia original, mas ele não criou caso e disse: 'Manda bala, o problema é seu.'"


E assim nasceu O Bêbado e a Equilibrista. "Caía a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto / me lembrou Carlitos", assim começa "O bêbado e a equilibrista", com sua letra que empilha referências a eventos e personalidades marcantes do período de exceção no Brasil. Nos versos "choram Marias e Clarisses", por exemplo, Aldir Blanc cita as viúvas Maria, mulher do operário Manuel Fiel, e Clarisse Herzog, esposa do jornalista Vladimir Herzog, brasileiros assassinados nos porões do DOI-CODI (órgão de inteligência e repressão do governo militar, subordinado ao Exército) por fazerem parte da oposição política à ditadura.

Mas o trecho mais lembrado de "O bêbado e a equilibrista" é justamente o do "Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil", referência ao sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, que esteve exilado desde 1971, tendo passado pelo Chile (onde foi assessor do presidente Salvador Allende, deposto e assassinado em 1973, no golpe militar do general Augusto Pinochet), Canadá e México.

Quando o samba ficou pronto, João Bosco e Aldir Blanc o enviaram para a cantora que melhores interpretações e mais visibilidade vinha dando a suas composições: Elis Regina, estrela suprema da MPB. A mesma artista que, em 1972, havia sido "enterrada" por Henfil, em uma charge para o jornal "O Pasquim", no chamado Cemitério dos Mortos-Vivos, devido à participação na Olimpíada do Exército (ela havia recebido ameaças do Exército por comentários depreciativos feitos em entrevistas dadas na Europa e, por temer pelo filho pequeno, achou melhor atender ao convite para a apresentação). Henfil se emocionou ao ouvir a interpretação de Elis Regina e os dois se reconciliaram. Elis mostrou "O bêbado e a equilibrista" ao cartunista, que percebeu naquele samba um importante aliado na luta pela abertura política diante de uma ditadura então enfraquecida: "Agora temos um hino, e quem tem um hino faz uma revolução!", disse Henfil a Betinho, por telefone, tentando convencê-lo a voltar ao Brasil. A música foi tocada, em diversos gravadores, pelas pessoas que foram receber os exilados (Betinho, entre eles) no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, no mês de setembro de 1979.

O detalhe curioso sobre "O bêbado e a equilibrista" é que, quando escreveu sobre "a volta do irmão do Henfil", Aldir Blanc de fato não sabia o seu nome. E passou-se um bom tempo até que ele viesse a conhecer pessoalmente o sociólogo, que se depois da volta ao Brasil se tornaria um importante ativista pelos direitos humanos, vindo a criar o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e, mais tarde, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. "Nós tivemos um encontro que só pode ser chamado de cômico", contou Aldir Blanc em depoimento ao Ibase, em 2017, nos 20 anos da morte do Betinho (ele sucumbiu a complicações da Aids, que antes dele levou os seus irmãos igualmente hemofílicos Henfil e Chico Mário). Eu esperava encontrar um sociólogo, um sei lá o quê e tal, e vi um sujeito irônico, gozador, embora com os olhos marejados de lágrimas. Nosso primeiro encontro foi na porta do banheiro do Canecão. Nos abraçamos e a frase dele foi: “Eu não ia voltar, eu tinha me planejado todo para não voltar, mas ouvi a sua letra para a música do João e resolvi voltar, seu fdp!'"

Passemos à análise da letra da música:

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos


A tarde que caía "feito um viaduto" fazia menção à queda, em 1971, do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro (a obra, concluída dois anos antes, ruiu subitamente, soterrando 48 pessoas e matando 29).
De forma irônica, Aldir Blanc se refere ao otimismo do período como uma ilusão tão frágil quanto uma obra malfeita. Além disso, temos a figura de Carlitos, que simboliza a classe trabalhadora, a mais afetada pela situação.
Também é possível entender o personagem como um representante da classe artística, uma vez que as roupas pretas de Carlitos simbolizam o luto pela falta de liberdade.

A Lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel


A Lua é utilizada aqui no sentido figurado para se referir a políticos que defendiam o regime militar por interesses particulares. Sem luz própria, ela recorre às “estrelas frias” (militares poderosos) em busca de “um brilho de aluguel” (ganhos eleitorais e pessoais). Ou seja, tal qual a cafetina dona do bordel, que explora as prostitutas para benefício próprio, esses políticos se vendiam ao regime, para obter ganhos pessoais.

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!


O mata-borrão era um papel absorvente, usado para remover excessos de tinta das canetas-tinteiro. Ou seja, um utensílio para eliminar erros.
Assim, o verso “e nuvens no mata-borrão do céu” se refere às torturas e desaparecimentos promovidos pelo regime militar. Os torturadores são representados pelas “nuvens”, enquanto o “mata-borrão” simboliza o DOI-CODI, órgão de repressão do governo. Durante o período da ditadura militar, era comum que opositores fossem eliminados pelos militares, que forjavam situações para justificar e abafar as mortes.

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil!


A figura do “bêbado com chapéu-coco” é mais uma referência ao personagem Carlitos. Assim como Carlitos, que mantinha a irreverência diante das dificuldades, o povo continuava a tentar levar a vida com bom humor, acreditando que dias melhores chegariam.

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil


Para Aldir Blanc, era um desejo de toda a sociedade que pessoas exiladas, como Betinho, retornassem ao Brasil. Em “chora a nossa Pátria mãe gentil”, há uma alusão irônica ao Hino Macional Brasileiro. Neste verso ele menciona a dor de “Marias e Clarisses”, em referência às mães e viúvas de presos políticos, como Maria, esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, e Clarice, esposa do jornalista Vladimir Herzog, ambos torturados e mortos pelo regime.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar


A música, que começa em tom de desalento, termina com uma mensagem de fé: toda a luta de pessoas contrárias ao regime, que sonhavam com a abertura democrática, não seria em vão. A esperança, mesmo que frágil e andando de sombrinha na corda bamba, existia.

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...


Ainda que o período fosse de incertezas, tanto o povo quanto a classe artística deveriam seguir em frente, equilibrando suas esperanças na corda bamba. Afinal, a vida só tem um sentido: seguir em frente!



Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com


___________________

Direção e Editoria
Irene Serra