Ano 23 - Semana 1.177 

 
ARQUIVO de MÚSICA




16 de junho, 2020

Adeus, Moraes Moreira

(1947-2020)

 Cândido de Lima Fernandes


As pessoas costumam identificar Moraes Moreira como o eterno Novos Baianos ou o autor de hits como “Preta Pretinha”, "Pombo Correio", “Besta é tu”, "Festa do Interior" ou "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira". Moraes Moreira foi muito mais que isso. Foi um dos músicos mais inventivos e um dos compositores mais versáteis da história da música popular brasileira. Sintetizou diferentes gêneros como rock, samba, choro, frevo, baião e música erudita e influenciou inúmeras manifestações musicais na trajetória interrompida no dia 13 de abril deste ano, quando morreu dormindo, no Rio de Janeiro, após sofrer um infarto agudo do miocárdio.

Moraes Moreira, nome artístico de Antonio Carlos Moreira Pires, nasceu em 8 de julho de 1947 em Ituaçu, uma pequena cidade distante 470 km da capital baiana, Salvador. Começou na música ainda adolescente, tocando sanfona de 12 baixos. Com pouco tempo de aprendizado, animava festas de São João, casamentos e batizados. Em 1963, fez o curso científico na cidade de Caçulé, no interior da Bahia, onde conheceu diversos violonistas e se apaixonou pelo violão. Com 19 anos, mudou-se para Salvador com o intuito de fazer o curso de medicina, mas acabou indo estudar música no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia. Na pensão em que morava, conheceu os futuros parceiros do grupo Novos Baianos: Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão. Este o apresentou ao cantor e compositor baiano Tom Zé, professor de violão no Seminário, com quem passou a trocar informações sobre harmonia e composição. Com os dois companheiros de pensão e os reforços de Baby Consuelo (atual Baby do Brasil) e o guitarrista Pepeu Gomes, criou o grupo Novos Baianos, do qual fez parte entre 1968 e 1975, grupo só comparável no país em inventividade aos Mutantes, na mistura de ritmos e gêneros e estética.

O grupo Novos Baianos estreou em 1968 com o espetáculo “O Desembarque dos Bichos depois do Dilúvio Universal”. Em 1969, foi para São Paulo participar do 5º Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, defendendo a música “De Vera”, de Moraes Moreira, com letra de Galvão, de quem se tornou parceiro frequente. Lançou, em seguida, o primeiro disco, “Ferro na Boneca”. A presença de João Gilberto na comunidade do Novos Baianos contribuiu para acentuar o caráter musical multifacetado do grupo, fundindo sonoridades do samba, frevo e baião com o rock. Moraes Moreira aprendeu a maneira original de João Gilberto tocar violão e com ele se aproximou do repertório de compositores como Assis Valente. Em 1972, gravou “Acabou Chorare”, que vendeu mais de 100 mil cópias, trazendo no repertório o samba “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, além das composições próprias do grupo. Vale a pena destacar que a revista Rolling Stone fez uma votação, em 2007, para os 100 Maiores Discos da Música Brasileira e a obra-prima do grupo, "Acabou Chorare", ficou em primeiro lugar.

Em 1975, Moraes Moreira decidiu deixar os Novos Baianos. Iniciou, então, sua carreira solo como vocalista do trio elétrico Dodô e Osmar e gravou várias músicas populares associadas ao carnaval, no estilo que era convencionalmente chamado de "frevo trieletrizado". "Pombo Correio", "Vassourinha Elétrica" e "Bloco do Prazer", são exemplos de sucessos desta fase de sua carreira, sendo considerado o primeiro cantor de trio elétrico e apontado como um dos principais responsáveis pelo crescimento do carnaval de rua em Salvador.

Em 1979, lançou seu disco solo “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira”, com canções em parceria com Pepeu Gomes, Jorge Mautner, Antonio Rizério, Abel Silva, Fausto Nilo, Armandinho e Oswaldinho do Acordeon. Além da faixa-título, que se tornou hit nacional, o álbum traz canções que marcam o carnaval baiano, como “Eu Sou o Carnaval”, “Chão da Praça” e “Assim Pintou Moçambique”. Esta, em parceria com Antonio Rizério, é um marco na história da música baiana, pela mistura do frevo dos trios elétricos com o batuque dos blocos afro, prenunciando as fusões que animam o Carnaval e abrindo um novo caminho na música da Bahia, que culmina na chamada geração axé music.

Os anos de 1980 a 1994 representam um período muito fértil na carreira de Moraes Moreira, no qual lançou os discos “Bazar Brasileiro” (1980),”Moraes Moreira” (1981), “Coisa Acesa” (1982), “Pintando o Oito” (1983),”Mancha de Dendê Não Sai” (1984), “Tocando a Vida” (1985), “Mestiço é Isso” (1986), “República da Música” (1988), “Baiano Fala Cantando” (1988), “Moraes e Pepeu” (1990), “Cidadão” (1991),”Terreiro do Mundo” (1993) e Moraes e Pepeu Ao Vivo no Japão (1994). Também em 1994, lançou o CD "Brasil tem Concerto", em parceria com o maestro e arranjador Vitor Santos, mesclando a música popular com a erudita. Nesse álbum, reforça a harmonia e a melodia, mantendo as características rítmicas de suas composições.

Em 1997, reuniu o grupo Novos Baianos, que lançou o disco ao vivo “Infinito Circular”, com canções dos discos anteriores e algumas inéditas. Ainda neste ano, lançou um álbum carnavalesco, "50 Carnavais", para celebrar seu cinquentenário de vida. Em 1999, com a proximidade das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, compôs "500 Sambas". No CD “Bahião com H”, de 2000, misturou o baião com o samba, aproveitando o oportuno interesse das novas gerações pela música regional brasileira. Em 2005, no álbum “De Repente”, fundiu o hip-hop com o repente nordestino, trazendo elementos da música eletrônica e do rap. Fez a turnê "Elogio à Inveja", onde apresentava canções que gostaria de ter composto. Em 2009, publicou o livro “A História dos Novos Baianos e Outros Versos”, escrito em linguagem de cordel, contando a história dos Novos Baianos. Em 2012, lançou, pela Biscoito Fino, “A Revolta dos Ritmos”, em 2015, “Nossa Parceria, com Davi Moraes e, em 2018, ”Ser Tão“, com composições inéditas.

Seu último trabalho foi um cordel que escreveu sobre a pandemia, chamado "Quarentena", que começa assim: "Eu temo o coronavírus/ E zelo por minha vida/ Mas tenho medo de tiros/ Também de bala perdida/ A nossa fé é vacina/ O professor que me ensina/ Será minha própria lida (...)". O “post” onde lançou o cordel é de 18 de março. Ele disse tê-lo escrito na madrugada anterior. Veio a falecer em 13 de abril.

Com o seu falecimento, resta-nos o assombro de saber o quanto um artista como ele fará falta quando acabar essa pandemia e tivermos que enfrentar o mundo novo que se avizinha, enquanto estamos em casa de pés e mãos praticamente atados.


Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com






 

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IRENE SERRA
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