Ano 23 - Semana 1.173 

 
ARQUIVO de MÚSICA




16 de maio, 2020

Adeus, Aldir Blanc (1946-2020)

 

Cândido de Lima Fernandes



Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das desventuras e alegrias do país, Aldir Blanc morreu no dia 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril.

Em mais de cinco décadas de atividade, Aldir construiu uma obra de mais de 600 letras, marcada pela capacidade de fundir os contrários: humor e fossa, devaneio e realidade, lirismo e desilusão.

Dor e alegria já estavam embaralhadas na infância de Aldir Blanc Mendes. Ele nasceu em 2 de setembro de 1946, no bairro do Estácio, berço do samba urbano carioca. Sua mãe nunca se recuperou totalmente de uma depressão pós-parto. Seu pai, que se tornaria um grande amigo, era pouco afetuoso. O filho único foi ser feliz com os avós em Vila Isabel, bairro de um seus ídolos, Noel Rosa - e, triste coincidência, do hospital onde morreu.

Curioso e observador, logo se embrenhou pelos encantamentos das ruas, dos tipos humanos e das manifestações culturais de sua cidade, cultivando suas principais paixões desde cedo: o futebol do Club de Regatas Vasco da Gama, o samba da Acadêmicos do Salgueiro, a vida boêmia, as pequenas e deliciosas histórias do cotidiano, a visão crítica e ácida sobre política e desigualdades sociais, e a poesia, que começou a escrever aos 16 anos.

Em 1966, Aldir ingressou na faculdade de Medicina, especializando-se na área de psiquiatria. Mas foi a música que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Em meados dos anos 1960, enquanto praticava letras e poemas, atuava como baterista em conjuntos semiprofissionais. Chegou a ser contratado para tocar em um programa infantil da TV Globo.

As primeiras letras a chamar a atenção apareceram em festivais do final da década. O sucesso veio com “Amigo é pra essas coisas”, parceria com Silvio da Silva Jr., que ficou em segundo lugar no Festival Universitário de 1970. Foi o período em que ele integrou o MAU (Movimento Artístico Universitário), ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.

No ano seguinte, um rapaz chamado Pedro Lourenço se impressionou em Ouro Preto, em Minas Gerais, com um estudante de engenharia tocando violão. Disse a ele, João Bosco, mineiro de Ponte Nova, que tinha um amigo no Rio de Janeiro capaz de pôr palavras naquelas melodias. Nascia ali um dos encontros mais importantes da música brasileira.

Em 1973, Aldir Blanc abandonaria de vez a carreira de médico, passando a se dedicar exclusivamente à música, um ano depois do lançamento em disco de “Agnus sei”, sua primeira parceria com João Bosco.

O encontro com Bosco representou um casamento perfeito: de um lado, o rico lirismo do letrista; do outro, a sofisticação rítmica e harmônica do violão e das melodias do então desconhecido músico mineiro. Ao lado dele, Aldir construiria uma das mais prolíficas e contundentes parcerias da história da música popular em todo o mundo. Juntos, escreveram clássicos como “Bala com bala” (sucesso na voz de Elis Regina), “Caça à raposa”, “Linha de passe”, “Cabaré”, “Kid Cavaquinho”, “O mestre-sala dos mares”, “Incompatibilidade de gênios”, “Corsário”, “Falso brilhante", “O ronco da cuíca”, “Comadre”, “Transversal do tempo” e “De frente pro crime” (sucesso na voz de Simone).

Uma das canções mais conhecidas, em parceria com João Bosco, é "O Bêbado e a Equilibrista", celebrizada na voz de Elis Regina. É interessante a história desta canção. No Natal de 1977, inspirado na morte de Charlie Chaplin naquele dia, João Bosco fez uma melodia citando “Smile”, composição do cineasta. Aldir Blanc achou que valeria associar a figura de Carlitos a outros deslocados na história, como os exilados pela ditadura militar. Em um de seus versos, "sonha com a volta do irmão do Henfil", fazendo referência ao cartunista Henrique de Sousa Filho, o qual, na época, tinha um irmão, o sociólogo Betinho, em exílio político no exterior. Lançada em 1979 no álbum “Essa Mulher”, de Elis Regina, “O Bêbado e a Equilibrista” foi adotada pelos brasileiros como o Hino da Anistia, em referência à lei que concedeu perdão aos perseguidos políticos e abriu caminho para o retorno da democracia no país.

Nos anos seguintes, além de Elis, a dupla João Bosco & Aldir Blanc ganharia vários registros com outras vozes femininas, como Clara Nunes, Simone, Alcione, Zizi Possi e Nana Caymmi, além das próprias gravações de João em seus discos. No início da década de 1980, contudo, a parceria arrefeceu, assim como o contato quase diário entre os dois. Nenhum dos dois jamais citou uma justificativa factual para o "tempo", que durou duas décadas, nas quais, diziam, a amizade nunca ficou em xeque. Os dois amigos inseparáveis começaram a se distanciar em 1982. A separação foi gradual e, de acordo com eles, sem brigas. As melodias de um e as letras do outro passaram a não se encaixar. Talvez por influência de terceiros, mágoas surgiram. O reencontro (imprevisto) aconteceu apenas em 2002, numa gravação de “O Bêbado e a Equilibrista” por Aldir Blanc para o songbook de João Bosco. Desde então, voltaram a se falar por telefone diariamente, além de compor às vezes, sem a urgência dos anos de juventude.

Com o afastamento de João Bosco, surgiram, a partir dos anos 80, novos parceiros, como Guinga (com quem fez, dentre oitenta músicas, "Catavento e Girassol", "Nítido e Obscuro" e "Baião de Lacan"), Maurício Tapajós (com quem compôs “Querelas do Brasil”), Sueli Costa, César Costa Filho (com quem compôs “Ela”, gravada por Elis), Jayme Vignolli, Hélio Delmiro, Djavan, Ivan Lins, Cristóvão Bastos (com quem fez o clássico "Resposta ao tempo", sucesso na voz de Nana Caymmi), Edu Lobo, Carlos Lyra, Ivan Lins, Raphael Rabello, Ed Motta e outros.

Mas foi Moacyr Luz quem complementou sua poesia como apenas Bosco havia sido capaz. Juntos, eles escreveram cerca de sessenta canções, entre elas, crônicas apaixonadas e agridoces sobre a cidade. Da obra de Aldir, aliás, o Rio emerge em canções como “Centro do coração”, “Só dói quando Rio”, “Do um ao seis” e “Saudades da Guanabara” (com Paulo César Pinheiro), lançada por Beth Carvalho em seu disco homônimo de 1989, que viria a se tornar um standard em rodas de samba cariocas.

Com um apetite voraz pela palavra, tanto a cantada quanto a escrita, em mais de 50 anos de carreira, todos dedicados às letras — seja como compositor, escritor ou cronista—, Aldir Blanc escreveu centenas de canções, lançou discos como “Rios, ruas e paraísos” (1984, com Maurício Tapajós), “Aldir Blanc — 50 anos” (1996) e “Vida noturna” (2005), publicou livros — “Rua dos Artistas e arredores” (1978), “Porta de tinturaria” (1981) e “Vila Isabel, inventário da infância” (1996), entre outros — e escreveu crônicas, críticas e artigos para veículos de imprensa como O GLOBO, "O Pasquim", "Jornal do Brasil", “O Dia” e a revista "Bundas".

Autor do livro “Aldir Blanc: resposta ao tempo”, o jornalista Luiz Fernando Vianna falou ao GLOBO em 2013 sobre a dualidade entre doçura e tristeza presente em toda a obra do compositor: — “É esse paraíso da infância, mas com a doença da mãe pairando, o inferno da adolescência, o novo paraíso da primeira juventude, o inferno da perda das filhas gêmeas (em 1974, as meninas prematuras morreram ao nascer)... Emoções intensas na vida de um cara sensível e obcecado por leituras. Deu o caldo que deu”.

Em 2005, na época do lançamento de "Vida noturna", primeiro disco solo de Aldir como cantor, João Bosco resumiu o porquê das grandezas de seus versos: — “Ele observa o mundo que está em volta dele, a vida que está acontecendo e nada escapa ao Aldir. Ele faz isso com um brilhantismo de quem não teme a morte. Canta a vida o tempo todo e só utiliza a morte quando precisa dela para fazer um verso. A morte para ele é o trecho de uma calçada onde ele cai. A morte coincide com o paralelepípedo e é apenas um detalhe do cenário. Ninguém mais consegue escrever com essa total liberdade de alguém que não teme nada”.

Nos últimos anos, Aldir vivia recluso em seu apartamento, na Tijuca. Desenvolveu uma fobia social que se converteu em reclusão quase permanente. Contribuiu para isso um grave acidente de carro acontecido em 1991 e que lhe dificultou para sempre o movimento da perna esquerda. Também tinha diabetes. Havia mais de dez anos que, salvo dias de exceção, não fumava nem bebia. Distante da bebida e do cigarro que lhe fizeram companhia em tantos momentos, ele se dedicava a filhas e netos com vigor. Passava a maior parte do tempo em seu escritório cultivando a obsessão por livros. Lia sem parar, de tudo: mitologia grega, Segunda Guerra Mundial, psicanálise, muitos romances policiais etc. Nunca saiu do Brasil, mas viajava com os livros.

Adorava falar pelo telefone com os amigos. Comentava o noticiário - com humor e indignação – e compartilhava informações sobre a família. No primeiro casamento teve duas filhas, Mariana e Isabel. Tristeza maior de sua vida, perdeu gêmeas no dia do parto prematuro, em 1974. Dizia que ali se foi o ânimo para exercer a medicina profissionalmente. Quando se casou com a professora Mari Lucia, ela já tinha duas filhas, Tatiana e Patrícia. Viraram suas também. Das quatro vieram cinco netos e um bisneto.
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Nos dias anteriores à internação, falava sempre da Covid-19, com medo de que alguém amado fosse atingido. Não demonstrava preocupação consigo mesmo. Tudo aconteceu muito rápido. Numa quinta-feira estava bem, na sexta foi levado de ambulância para o hospital.

Por Aldir Blanc chora a nossa Pátria, mãe gentil. Deixa, além da família, um sentimento de orfandade em muitas Marias e Clarices, que choram, ao lado de incontáveis amigos e admiradores, no solo do Brasil.


Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com






 

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