Ano 23 - Semana 1.157 

 
ARQUIVO de MÚSICA




16 de janeiro, 2020

SÉRIE "ENCONTROS HISTÓRICOS NA MPB":

Elis & Tom

 

 
Cândido de Lima Fernandes


Inaugurando uma nova série de artigos sobre música popular brasileira, vamos tratar neste número do álbum “Elis & Tom”, de 1974, que reuniu Elis Regina (17 de março de 1945 – 19 de janeiro de 1982) – uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo – com Antonio Carlos Jobim (25 de janeiro de 1927 – 8 de dezembro de 1994), um dos maiores compositores do Brasil e do mundo. O repertório inclui 14 faixas, todas de autoria de Tom Jobim, nove em parceria com outros compositores. O lançamento marcou os dez anos de Elis na Philips, tendo resultado de uma oferta da gravadora para celebrar a data.

As gravações do disco foram realizadas no MGM Studios em Los Angeles (EUA), nos Estados Unidos, de 22 de fevereiro a 9 de março de 1974. Essas gravações foram marcadas, inicialmente, por um clima de tensão. Elis e César Camargo Mariano (marido da cantora, à época) ficaram apreensivos com a receptividade de Tom Jobim, que estava incomodado com vários aspectos do projeto: a escolha de César como arranjador, a participação dos músicos que acompanhavam Elis à época e o uso de instrumentos elétricos (guitarra, baixo e piano). Entre os músicos, além de César como pianista, participavam o baixista Luizão Maia, o baterista Paulinho Braga, o percussionista Chico Batera e o guitarrista Hélio Delmiro. Tom Jobim tinha clara preferência pelos produtores com quem trabalhava no período, como o alemão Claus Ogerman e o norte-americano Dave Grusin. Com a intermediação do produtor Aloysio de Oliveira, Tom aceitou as condições de gravação sugeridas por Elis e César, convencido de que o disco era um projeto da carreira de Elis e que César era o produtor dela desde 1970. César Camargo Mariano foi nome fundamental na formatação deste álbum. Ao pianista foi confiada a missão de fazer os arranjos do disco, com exceção das faixas “Modinha” e “Soneto da separação” (ambas de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), arranjadas por Tom.

Dissipada a tensão inicial, o disco foi gravado em dois dias. No primeiro, foram gravados a voz de Elis, o piano de Tom e um naipe de cordas e flautas regido pelo norte-americano Bill Hitchcock. No seguinte, foram gravados o violão, tocado por Oscar Castro Neves, a bateria e a parte elétrica por Tom, guitarra, baixo e piano.

O resultado final de “Elis & Tom” mostra uma Elis sorridente na fotografia que ilustra a capa. Tanto a cantora como o compositor mostram-se descontraídos na primeira faixa, “Águas de Março” (Antônio Carlos Jobim), cantada em dueto, contrapondo a interpretação precisa de Elis Regina com o timbre grave e sem grande extensão de Tom. No fim da gravação, os dois cantam os versos da letra com improvisos e sílabas cortadas. Apesar de essa canção ter sido regravada pelos dois em discos solos antes de 1974, a versão desse disco tornou-se a mais famosa de todas e é, por muitos, considerada como a versão definitiva. “Águas de Março” é apontada por estudiosos, jornalistas e críticos de música como uma das maiores canções de todo o cancioneiro brasileiro.

Os momentos mais emocionantes do disco são “Pois é” (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda), “Modinha” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “O que tinha de ser” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “Por toda a minha vida” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “Corcovado” (Antonio Carlos Jobim) e o belo poema, “Soneto da separação”, de Vinicius de Moraes, musicado por Tom. O compositor, além de tocar em todas as faixas, assina os arranjos de “Soneto da separação” e “Modinha”. A gravação de "Por toda a minha vida" conta apenas com a orquestra e o vocal de Elis. Cabe mencionar que Elis canta sozinha a maioria das faixas, excetuando-se “Inútil paisagem” (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira), “Soneto da separação” e “Corcovado”. Tom Jobim tocou piano e violão na faixa "Chovendo na roseira" (Antônio Carlos Jobim), que Elis interpreta de modo suave, esmerando-se nos agudos, e também adicionou um vocal abafado aos refrões da cantora em "Corcovado", onde o arranjo de flautas cadenciadas e de cordas em segundo plano garantem um clima sensual e triste. Aliás, esta faixa registra um momento mais versátil de Tom como compositor, que vai além da bossa nova. Também não se enquadram no rótulo de bossa nova as canções “Soneto da separação” e “Chovendo na roseira”.

As faixas mais próximas da bossa nova, "Triste" (Antônio Carlos Jobim), "Brigas, nunca mais" (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes) e "Fotografia" (Antonio Carlos Jobim) possuem uma sonoridade leve, com o vocal de Elis relaxado, a bateria sincopada, o violão reproduzindo acordes de bossa nova, sem o peso das cordas do regente Bill Hitchcock.

Nas faixas "Retrato em branco e preto" (Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda) e "Modinha", o maestro participa apenas com o seu piano. O resultado dessas canções garante uma sonoridade diferente das outras faixas bossanovistas: tanto o vocal quanto o clima orquestrado são mais dramáticos. A faixa “Só tinha de ser com você" (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira) representa um belo exemplo de samba jazz, combinando bateria sincopada com violão tocando acordes de bossa nova. "Inútil paisagem" fecha o disco, sendo considerada uma canção difícil de ser cantada, porque exige equilíbrio entre técnica e emoção e e aqui Elis canta apenas acompanhada pelo piano de Jobim, que também sussurra algumas partes da letra - o mesmo ocorre com "O que tinha de ser".

“Elis & Tom” foi um sucesso de vendas e atendeu a todas as expectativas de Elis, Jobim e da gravadora. Segundo a revista Billboard, tornou-se um dos álbuns brasileiros mais vendidos de todos os tempos. Grande parte da reputação internacional de Elis Regina como intérprete se deve à gravação desse álbum. Em agosto de 2004, a Trama, coordenada por João Marcelo Bôscoli, filho de Elis, em parceria com a Universal Music, lançou uma edição especial de comemoração dos 30 anos do disco, com supervisão de César Camargo Mariano. Esta edição especial conta com diálogos de bastidores entre os músicos e duas faixas bônus: uma versão alternativa de "Fotografia" e a canção "Bonita" (Antonio Carlos Jobim), que tinha sido retirada do repertório porque Elis não havia gostado de sua pronúncia em inglês. A nova versão, segundo Mariano, seria como se o ouvinte "estivesse dentro do estúdio: é possível escutar barulhos do estúdio e pés batendo no chão contando os tempos musicais. Foi o primeiro álbum da história da MPB a utilizar esse recurso tecnológico, até então novo e inédito.

O álbum “Elis & Tom” é histórico porque reúne o mais musical dos compositores brasileiros e, tecnicamente, a mais bem dotada das nossas intérpretes, de todos os tempos. Quem ouve Elis cantar, ainda que só pelas gravações que ela deixou, não tem como manter-se em desacordo com os que a consideram a melhor intérprete da Música Popular Brasileira. Elis reuniu – e desenvolveu – todas as qualidades que fazem uma cantora marcar época. Senhora da técnica e dona de uma emoção insuperável, exalava excelência em música por todos os poros O disco é maravilhoso, o repertório é irretocável e as leituras são definitivas. Foi gravado em 1974, mas ainda hoje, quando o escutamos, sabemos que é um disco feito para ficar, que queremos ouvir sempre.

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com






 

Direção e Editoria
IRENE SERRA
irene@riototal.com.br