16/10/2025
Ano 29
Semana 1.479





ARQUIVO
FILMOSCÓPIO


 



A Brutal Delicadeza de Amor


Daniel de Boni


Uma dor familiar moveu Michael Haneke a escrever "Amor": o suicídio de sua tia de 90 anos, que o criou. Ela passou os últimos anos sofrendo de reumatismo severo, isolada por escolha, recusando-se a viver em um asilo. A pedido dela, Haneke chegou a ser confrontado com a ideia da eutanásia. O filme nasceu dessa experiência pessoal, mas se afastou da autocomiseração para refletir, com brutal lucidez, não sobre a morte ou a velhice em si, mas sobre algo ainda mais delicado: como lidar com o sofrimento irreversível de quem se ama.

Michael Haneke iniciou o roteiro em 1992, mas um bloqueio criativo o impediu de encontrar o desfecho da história. Ao perceber semelhanças com “A Última Fuga”, de Léa Pool — sobre um velho cuidado por sua esposa —, abandonou temporariamente o projeto. Retomou-o anos depois, já com clareza, e o concluiu rapidamente. Fiel ao seu estilo, Haneke não permitiu que nenhuma palavra do roteiro fosse alterada: cada frase foi dita exatamente como escrita: sem adereços, sem improvisos.

Haneke não buscava emoção fácil, mas a verdade crua e silenciosa que emerge do tempo que arrasta consigo a doença corrosiva. Tudo na produção foi concebido para acontecer entre quatro paredes, onde o amor não se declara, apenas resiste. Cada detalhe carrega o peso da intimidade, até mesmo as pinturas que preenchem os cômodos da casa, herdadas dos próprios pais do diretor. Seu perfeccionismo era implacável e reflete na célebre cena com o pombo, aparentemente trivial, porém, filmada 12 vezes, enquanto ele tentava, em vão, dirigir o animal.




Emmanuelle Riva ganhou o papel da pianista Anne por sua atuação natural, tal como ficou comprovado na cena do café da manhã, quando sua personagem sofre o primeiro derrame. Durante as filmagens, Riva teve à sua disposição um segurança particular e preferiu dormir no próprio set para evitar a poluição e o barulho da cidade. Mesmo desconfortável, aceitou filmar uma delicada cena de nudez, como se fosse a própria Anne. Jean-Louis Trintignant, afastado do cinema há 14 anos, aceitou voltar apenas porque o papel havia sido escrito especialmente para ele — e por reverência a Haneke.




O filme entrou para a história. Foi indicado ao Oscar de Melhor Filme em 2013 — uma raridade para obras faladas em outra língua que não o inglês — e tornou-se o único filme de Haneke classificado como PG-13. Riva, aos 84 anos, quebrou o recorde como a atriz mais velha indicada ao Oscar, no mesmo dia em que Quvenzhané Wallis, com 9, se tornava a mais jovem. Duas pontas de uma vida que “Amor” celebra e enfrenta com brutal delicadeza. Não é um filme a se assistir, é um filme a se testemunhar. Como tudo aquilo que amamos, permanece na memória, mesmo diante do fantasma do esquecimento.






Pesquisa e redação: Daniel de Boni
Músico e criador do projeto Filmoscópio
https://www.facebook.com/filmmoscopio
 

Direitos Reservados.
É proibida a reprodução deste artigo sem autorização do autor.



Direção e Editoria
Irene Serra
Revista Rio Total