|
A Brutal Delicadeza de Amor

Daniel de Boni
Uma dor familiar moveu Michael Haneke a
escrever "Amor": o suicídio de sua tia de 90 anos, que o criou. Ela
passou os últimos anos sofrendo de reumatismo severo, isolada por
escolha, recusando-se a viver em um asilo. A pedido dela, Haneke chegou
a ser confrontado com a ideia da eutanásia. O filme nasceu dessa
experiência pessoal, mas se afastou da autocomiseração para refletir,
com brutal lucidez, não sobre a morte ou a velhice em si, mas sobre algo
ainda mais delicado: como lidar com o sofrimento irreversível de quem se
ama.
Michael Haneke iniciou o roteiro em 1992, mas um bloqueio
criativo o impediu de encontrar o desfecho da história. Ao perceber
semelhanças com “A Última Fuga”, de Léa Pool — sobre um velho cuidado
por sua esposa —, abandonou temporariamente o projeto. Retomou-o anos
depois, já com clareza, e o concluiu rapidamente. Fiel ao seu estilo,
Haneke não permitiu que nenhuma palavra do roteiro fosse alterada: cada
frase foi dita exatamente como escrita: sem adereços, sem improvisos.
Haneke não buscava emoção fácil, mas a verdade crua e silenciosa que
emerge do tempo que arrasta consigo a doença corrosiva. Tudo na produção
foi concebido para acontecer entre quatro paredes, onde o amor não se
declara, apenas resiste. Cada detalhe carrega o peso da intimidade, até
mesmo as pinturas que preenchem os cômodos da casa, herdadas dos
próprios pais do diretor. Seu perfeccionismo era implacável e reflete na
célebre cena com o pombo, aparentemente trivial, porém, filmada 12
vezes, enquanto ele tentava, em vão, dirigir o animal.

Emmanuelle
Riva ganhou o papel da pianista Anne por sua atuação natural, tal como
ficou comprovado na cena do café da manhã, quando sua personagem sofre o
primeiro derrame. Durante as filmagens, Riva teve à sua disposição um
segurança particular e preferiu dormir no próprio set para evitar a
poluição e o barulho da cidade. Mesmo desconfortável, aceitou filmar uma
delicada cena de nudez, como se fosse a própria Anne. Jean-Louis
Trintignant, afastado do cinema há 14 anos, aceitou voltar apenas porque
o papel havia sido escrito especialmente para ele — e por reverência a
Haneke.

O filme entrou para a história. Foi indicado ao Oscar de
Melhor Filme em 2013 — uma raridade para obras faladas em outra língua
que não o inglês — e tornou-se o único filme de Haneke classificado como
PG-13. Riva, aos 84 anos, quebrou o recorde como a atriz mais velha
indicada ao Oscar, no mesmo dia em que Quvenzhané Wallis, com 9, se
tornava a mais jovem. Duas pontas de uma vida que “Amor” celebra e
enfrenta com brutal delicadeza. Não é um filme a se assistir, é um filme
a se testemunhar. Como tudo aquilo que amamos, permanece na memória,
mesmo diante do fantasma do esquecimento.
Pesquisa e redação: Daniel de
Boni Músico e criador do projeto Filmoscópio
https://www.facebook.com/filmmoscopio
Direitos Reservados. É proibida a reprodução deste artigo sem autorização do autor.

|