Ano 25
Semana 1.262

 

 


- Purim, a comemoração

- Purim e o costume popular de beber vinho

- Purim, uma história quase inacreditável

 




 

Purim, plural singular 5763

 


Jane Bishmacher de Glasman


Introdução:
Que este mês é Purim - não é novidade. Seu significado e simbolismo têm sido extensamente discutidos. Apesar do nome desta festa ser um vocábulo no plural, tem características singulares, que dão uma dimensão do pluralismo judaico. Seguem temas polêmicos atinentes para repensar, incluindo alguns de textos meus anteriores.

Ficha técnica(1):
No tempo do rei Assuero, provavelmente, o rei que os gregos chamam Xerxes, os judeus que viviam no império persa correram perigo de morte, devido ao ministro Hamán, mas foram salvos por Ester e Morde'hai. O evento é celebrado em Purim, cujo nome, plural de pur (sorte), é dado à festa porque Hamán sorteou o dia em que os judeus deviam ser exterminados. Mas a rainha Ester, aconselhada por seu primo-tio Morde'hai, apresentou-se ao rei, denunciou a trama e obteve o decreto pelo qual seu povo foi salvo (2). Morde'hai foi carregado em triunfo e nomeado ministro. Hamán foi enforcado com seus filhos na mesma forca que havia preparado para Morde'hai. Esta história é narrada na Meguilat Ester (Rolo de Ester), lida na véspera e na manhã da festa, acompanhada por bênçãos e ações de graça. Jejua-se na véspera, em memória do jejum ordenado pela rainha Ester para invocar a ajuda de Deus contra Hamán.

O dia seguinte, 14 de adar, é de grande alegria: festeja-se a salvação dos judeus das mãos dos inimigos em todos os tempos e lugares. Costuma-se realizar um banquete, lembrando o de quando Ester conseguiu um contra-decreto para Hamán; come-se pastéis chamados oznei Haman; trocam-se presentes; dá-se esmola aos pobres e são organizadas festas de máscaras com danças e representações.

Costumes e leis de Purim:
Taanit Ester (Jejum de Ester) - Jejua-se na véspera de Purim, do amanhecer até após a leitura da Meguilá, lembrando o jejum que Ester fez na época.
Ma'hatzit HaShekel (1/2 Shekel) - no mesmo dia do jejum, à tarde, na hora da reza de min'há, costuma-se dar em nome de cada membro da família três metades de moeda corrente do país, para Tzedaká (caridade), na sinagoga.
Erev Purim (Véspera) - Ao anoitecer, começa a festa de Purim com a reza Arvit e a leitura da Meguilá contando a história. Toda vez que se pronuncia o nome Hamán, faz-se bastante barulho (3). A leitura é repetida na manhã, com a reza Sha'harit.
Mishloa'h Manot (Envio de Petiscos) - Em Purim é uma mitzvá mandar para outras pessoas pelo menos duas porções de comida pronta, símbolo de alegria e aproximação.
Matanot La Evionim (Donativos para os Pobres) - É uma mitzvá dar donativos para todos aqueles que estendem a mão no dia de Purim (no mínimo duas pessoas) para que o necessitado também possa festejar.
Ad lo Yeda ("até não se entender") - Excepcionalmente, em função da grande alegria de Purim, é permitido beber a mais.
Al HaNissim (Pelos Milagres) - Nas rezas em Purim, inclusive Birkat Há-Mazon, acrescenta-se uma porção, agradecendo-se pelos milagres que aconteceram na época, iniciado com as palavras Al HaNissim.
Seudat Purim (Refeição Festiva de Purim) - Feita antes do anoitecer, costuma-se prolongá-la até a noite quando, segundo o judaísmo, já seria o dia seguinte.
Shushan Purim - Na época em que ocorreu Purim, festejava-se na cidade de Susa a festa só no dia seguinte (15 de adar). A única cidade que, hoje em dia, festeja Purim no dia seguinte é Jerusalém. Em solidariedade às cidades de Susa e Jerusalém, judeus no mundo inteiro também comemoram um pouco este dia.

Uma curiosidade: dizem os sábios rabínicos, que após a chegada do Messias, só a festa de Purim permanecerá.

Mil e uma noites?
O livro de Ester é o mais singular de todo o Tanakh, a Bíblia hebraica. Mais parece um conto das "Mil e uma noites", Ester como uma Sherazade Kasher (?!), ou em termos "plim-plim" uma "clone de Jade".
Passa-se na Diáspora, na Pérsia, fora de Israel, onde permaneceu a comunidade originalmente exilada pelos babilônios, anistiada por Ciro e que optou por não retornar à Judeia, que vivia, na época do evento, o período do "Segundo Estado Judaico". Nossos rabinos, racionalizando e enfatizando a importância da ligação dos judeus na Diáspora com Israel, estabeleceram um elo entre Susa e Jerusalém, através do Shushan Purim, comemorado em cidades cercadas por muralhas.

Casamentos mistos
Judeus ortodoxos certamente celebram Purim. Mas não devem fixar-se no "pequeno detalhe" que a heroína da festa propiciou nossa vitória... graças a um casamento misto! (Ou vocês acham que Assuero converteu-se ao judaísmo para se casar com ela? Leiam a Meguilá!!!) Ou seja: ao mesmo tempo que Purim festeja a sobrevivência judaica, nos remete a uma estória que hoje em dia talvez gerasse muito mais "ti-ti-ti"...
O que você acha? Adoraria saber!...

Machismo ou Feminismo?
Duas mulheres têm papel essencial na estória de Purim: Vashti e Ester.
Se Vashti não tivesse saído de cena, Ester não teria entrado – na trama, na história judaica, nas nossas festas – muito menos teria um livro com seu nome.
Sob uma ótica feminista, Vashti seria a verdadeira heroína, por sua recusa a submeter-se ao machismo de seu marido e ser exposta como mulher objeto.
Já Ester é a não assumida: não assume nem seu nome judaico Hadassa, adotando Ester – que tem vários significados inter-relacionáveis: moeda persa, escondida e estrela.
Numa interrrelação, sob uma ótica feminista, ela assume um nome que representa alienação, materialidade e tem um caráter venal; esconde sua origem e ostenta sua beleza exterior para chegar a ser uma estrela. Participa, sem constrangimento, do primeiro desfile de misses ou concurso de beleza da história. Passa um ano no "spa" real, como num curso preparatório de "gueisha". Aceita fazer parte de um harém, abre mão da posição privilegiada de mulher judia, distinta desde a mais remota antigüidade das mulheres de outras origens e culturas.

Purim e Hanuká:
Comparando-se Purim e Hanuká, encontramos fatos curiosos.
As duas festas não estão presentes na Torá, pois aconteceram muito depois, sendo que ambas relatam milagres acontecidos com o povo judeu.

Ester e Judite tiveram participação ativa, porém bastante diferente, no desenrolar dos acontecimentos que deram origem às festas. Judite, "musa" de Hanuká, vivia em Israel e defendia sua pátria; Ester vivia na Pérsia e defendia a sobrevivência de seu povo em solo estrangeiro. Judite (nome já indicando sua origem) foi voluntariamente, sem ajuda, ao acampamento dos gregos que sitiavam a cidade e degolou o chefe Holofernes. Já Ester (nome que significa escondida), foi ao palácio do rei a pedido de Morde’hái.

Em Hanuká, o motivo da luta era espiritual: os gregos queriam a assimilação dos judeus. Em Purim, o motivo era mais físico: queriam exterminar o povo judeu. A festa de Purim é mais material: come-se e bebe-se muito. Em Hanuká, o maior símbolo é espiritual: acender a Hanukiá. Quanto às brincadeiras, em Hanuká usa-se o pião, que se segura de cima (simbolizando o milagre que veio do céu); em Purim brinca-se com o reco-reco, que se segura por baixo (como o milagre que veio do povo).

Anti-semitismo:(4)
Purim, que tem, como todos os Haguim (festas), um referencial literário – no caso, Meguilat Ester – apresenta talvez o primeiro discurso anti-semita oficial (Ester, 3: 8 e 9) e que é o modelo básico de todos os demais posteriores.
O anti-semitismo tem muitas caras (com ou sem omissão) e muitos nomes. Hoje é "politicamente incorreto" ser anti-semita; já anti-israelense, anti-sionista...
E os discursos repetem-se e transvestem-se: "não temos nada contra os judeus, mas os israelenses (ou o nome de um ou outro em particular) com sua política..." E tenta-se, na mídia, uma cruel inversão de lugares e conceitos: os israelenses são os "nazistas" dos palestinos, que vivem em "campos de concentração", são "exterminados"...
Não, nem os israelenses nem os judeus do mundo são/somos anjos - graças a Deus (literalmente)! Mas inverter referenciais históricos e sociológicos camuflando um antigo ódio... Triste máscara de Purim...

Purim passou a ter, infelizmente, tanta importância na História Judaica através do mundo, que existem "Purims" especiais (para comunidades que em vários lugares, no espaço e no tempo, conseguiram sobreviver a tentativas de extermínio) – o que traz uma sempre e renovada oportunidade de comemorar a sobrevivência milenar judaica.
No delicado momento que vivemos no Oriente Médio (mesmo para quem não é judeu ou "não está nem aí" – o mundo é nossa casa!), com movimentos de progresso e recuo em relação à paz, com fanáticos explodindo-se e a inocentes, com ameaças de "Guerra Santa"(!? para mim não existe expressão mais intrinsecamente contraditória), são meus mais ardentes (chama que não queima!) votos que possamos comemorar Purim em Paz...
Observação: este trecho é de um artigo de 3 anos atrás... bem antes do fatídico 11/9!


 
Bem X Mal?
A razão para a existência do mal não é apenas para que se torne impotente ao ser eliminado, mas para ser transformado em bem. Segundo o Hassidismo, a força vital do mal é boa. A equivalência numérica de Baru'h Morde'hai e Arur Haman (bendito Morde'hai e maldito Hamán) não deve ser entendida como conceitualmente semelhante, mas potencialmente igual: o negativo pode ser cultivado e transformado no positivo.(1)

O lugar de Deus
Procure o nome de Deus na Meguilá. Não está lá! Infere-se a presença divina na trama através da palavra Makom=lugar (Ester 4:14). Há-Makom é uma forma de nos referirmos a Deus, através do atributo da onipresença – afinal, Deus não está em todos os lugares?

Os Assumidos
Apesar do que foi dito, na Meguilat Ester expressa-se a identidade judaica – tanto do povo quanto de um indivíduo – assumida, declarada ... e polêmica, é claro. Morde’hai, primo de Ester e seu tutor é o real articulador da trama.

Ele é quem orienta Ester, até a ocultar sua origem judaica; ronda o palácio; descobre e revela intrigas; assume sua recusa judaica de reverenciar Hamán; consegue "driblar" a guarda do harém e comunicar-se com Ester, passando-lhe documentos, inteirando-a dos fatos, orientando seu procedimento, afrontando-a (4:14) e confrontando-a com sua condição judaica e, para culminar, foi "o primeiro destaque em carro alegórico a desfilar carnavalescamente" vestido com as roupas do rei e montado em seu cavalo. Mais ainda – chegou ao final da história como "o segundo depois do rei" (10:3) e, em tempos sem recurso de mídia, revelou-se um grande "marketeiro" (9: 20-23), divulgando a história e "instituindo" a comemoração de Purim. Maquiavélico? Provavelmente. Mas assumido!

Cidadania e ação social
Purim deu a feição moral judaica ao Carnaval, tema de outro artigo meu: "Purim in the Land of Carnival", de 1988. Ou seja – décadas antes da polêmica Carnaval 2003: Mangueira e Judaísmo...
E milênios antes dos atuais projetos de cidadania, voluntariado e solidariedade, já comemorávamos distribuindo "cestas básicas".
Continuando a Campanha que iniciei com "TuBishvat e Ecologia: Plantemos esta ideia" em 2001, proponho doarmos alimentos a carentes, instituições, Ongs, etc junto com explicações sobre Purim, como parte do "Projeto Mostremos e Demonstremos Nossa Cultura", dentro do mais puro espírito judaico, unindo tradição à ação.
Por outro lado é a festa mais adequada para campanhas anti-drogas "legalizadas"- no caso, a bebida. Um princípio básico judaico é o Pikua’h Nefesh, ameaça à integridade física, à vida. Só recentemente foram descobertos malefícios e pikua’h nefesh de antigos hábitos, como fumar e beber. A partir do conhecimento, cabe-nos conscientizar outros e apoiar iniciativas como o JACS, procurando reverter o triste quadro do vício.
Aguardo sua posição. E mais: sua ação.


Notas:
(1) Do livro "À Luz da Menorá: Introdução à Cultura Judaica", da autora do artigo, 1999.
(2) Autorizando formalmente a auto-defesa judaica.
(3) Pelo menos simbolicamente, procurando "apagar"seu nome e, por extensão, de todos os que quiseram aniquilar os judeus. Como aspecto psico-pedagógico, motiva a participação ativa das crianças e libera um lado lúdico dos adultos.
(4) Do artigo "Purim, (Re)Intifada e Casamentos Mistos", da autora, 2001, site Eifo.


Profª Drª JANE BICHMACHER DE GLASMAN
Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica - USP, Professora e Coordenadora do Setor de Estudos Hebraicos da UERJ, Professora do ISTARJ, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos –UERJ, Professora e Coordenadora do Setor de Hebraico – UFRJ (aposentada), Coordenadora do Grupo de Estudos Beer Miriam–ARI, membro do Diálogo Judaico-Cristão, escritora




Direção e Editoria
Irene Serra