Rosh Hashana
Sempre é tempo de reflexão
O que dizem os
nossos sábios sobre o dia de Rosh Hashaná, literalmente cabeça de ano?
Dizem que é uma comemoração muito especial no calendário judaico. Ao
contrário do que muitos imaginam, Rosh Hashaná mais do que iniciar
alguma coisa, conclui um período de preparação representado pelo mês de
Elul, que precede a festa do ano novo. Nesse mês todo judeu deve chegar
ao ano novo após uma cuidadosa reflexão sobre sua existência, sobre as
razões de suas falhas, principalmente as de caráter e sobre as soluções
que encontrou para melhorar como ser humano.
Tenho a certeza de
que todos aqui já fizeram essa reflexão e já encontraram suas
respostas... Devido ao caráter social da religião judaica, além de
resolver seus problemas, cada um de nós é solicitado a ajudar a que
todos despertem para o momento da renovação da vida, o ano novo. É por
isso que nessa data toca-se o shofar, uma espécie de berrante feito de
chifre de carneiro: para que mesmo os mais indiferentes sejam
despertados e não aleguem depois que não foram avisados de que o momento
havia chegado.
Em Rosh Hashaná temos que, mais do que nunca,
pensar no próximo. É por isso que nessa data se enviam cartões de
felicitações, reafirmam-se amizades, estreitam-se relações e outras
novas são buscadas: se um é responsável por todos e todos são
responsáveis por um a solidariedade é virtude e obrigação.
Lembro-me de Rosh Hashaná na casa de meus pais, em Sorocaba. Tudo
começava com uma festiva visita à loja de calçados da rua Barão do Rio
Branco, a Galeria dos Calçados, se não me falha a memória. Era para lá
que éramos conduzidos pela minha mãe e era lá que, ruidosamente,
escolhíamos os sapatos que nosso crescimento, aparentemente
descontrolado, prometia que serviriam para apenas alguns meses. É
verdade que o futebol, jogado em frente à sinagoga com tampinhas de
refrigerante em vez de bola, se encarregava de encurtar ainda mais a
duração do pobre sapato, mais isso é uma outra história. O que cabia
agora registrar era que só após o sapato novo, acrescido do terno novo,
meias, camisa e até cueca nova, é que nos sentíamos adequadamente
paramentados para o ano novo.
Pela manhã, bem cedinho, saíamos a
pé da Hermelino Matarazzo, no bairro operário do Além Linha, para o
centro, todos juntos, crianças de mãos dadas, sentimento de que
estávamos novos por fora e por dentro em direção à sinagoga. Antes meu
pai punha na porta de aço da loja o aviso cuidadosamente desenhado em
sua letra firme e regular: fechado por motivo de feriados religiosos. E
assim caminhávamos, sérios e felizes, cientes que tínhamos sido legais
nos 12 meses anteriores. Nesses dias não íamos à escola, mesmo se
houvesse prova e meus pais escreviam em nossas cadernetas o pedido
oficial de dispensa. Isso tudo nos identificava como membros de um grupo
e nos diferenciava de outros grupos.
Na sinagoga a solenidade,
em vez de começar de verdade, acabava. Não há lugar mais zoneado do que
uma sinagoga de verdade, e nossa sinagoga, graças a Deus, era uma
sinagoga de verdade. Todos rezavam juntos, as mulheres devidamente
separadas por um biombo acortinado que atravessávamos sem cessar.
Freqüentemente alguém se animava e, em vez de murmúrios ritmados soltava
lamentos, gritos, uivos em diferentes tons, mas sempre assustadores.
Quando a reza virava um bate papo mais ou menos generalizado, alguém
dava uma porrada na mesa exigindo silêncio, mas não conseguia muito mais
do que acordar os mais sonolentos.
As pessoas sentavam-se em
grupos de amizade e de política, pois apesar de sermos poucos,
conseguíamos nos dividir em duas ou três facções que se odiavam
mortalmente e para quem Rosh Hashaná, quando passávamos dois dias
juntos, era uma ótima oportunidade para dizermos o que pensávamos uns
dos outros.
Não, não era um ambiente muito espiritual, nem ao
menos éramos estimulados a adequar o que o judaísmo tem de essencial ao
momento que vivíamos. Queriam que nos sentássemos junto com os adultos e
repetíssemos, acriticamente, suas falas, pois assim tinha sido com eles,
com seus pais e com seus avós. Nunca pude aceitar que uma coisa tão
forte como a identidade judaica pudesse depender apenas de nossas rezas
em hebraico de pronúncia idishizada e nenhuma relação com o mundo
pluralista em que vivíamos.
Hoje acredito que as pessoas faziam
o que sabiam e acreditavam que isso fosse toda a verdade. O massacre dos
judeus pelo nazistas e seus aliados, mesmo os assimilados, transformava,
aos nossos olhos, o mais odioso dos judeus em aliado necessário e o mais
doce dos não judeus em traidor potencial. Aos olhos ingênuos do judaísmo
sorocabano a identidade impossível era indispensável, mesmo sem que, de
fato, nos gostássemos tanto. Como meus pais eram bons e sinceros, me
afastei da sinagoga, mas carrego o espírito de Rosh Hashaná como
sementes, que, pela memória do meu pai e a honra da minha mãe, devo
espalhar por onde eu passar.
Jayme Pinsky é historiador, professor
titular da UNICAMP, diretor da Editora "Contexto". Enviado por Leon
M. Mayer Publicado na Revista Rio Total em 24 de setembro, 2005
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