16/01/2023
Ano 25 Número 1.302
ARQUIVO
W.J. Solha
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W.J. Solha
A TÉCNICA DA ENUMERAÇÃO EM CARLOS TRIGUEIRO
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Ao ler a
série de contos de Confissões de um Anjo da Guarda (Bertrand Brasil,
2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes, como o Livro
dos Desmandamentos, O Clube dos Feios e o Livro dos Ciúmes, volto a me
encantar com seu estilo denso, amargo, enxuto, sarcástico, e a me intrigar
com o que acabei percebendo ser um de seus sestros de notável artífice da
palavra: o uso recorrente da enumeração como forma de ampliação visual e
conceitual dos relatos.
O volume é composto de uma série de
histórias envolvendo anjos, esses personagens levados a sério pela Bíblia,
a Divina Comédia e O Paraíso Perdido, mas nem tanto em textos
contemporâneos, como o belo Um Senhor Muito Velho, Com Umas Asas Enormes
(de García Márquez), ou filmes como Asas do Desejo (de Wim Wenders), seu
remake A Cidade dos Anjos (de Brad Silberling), bem como Michael – Anjo e
Sedutor ( de Nora Ephron ) e o clássico A Felicidade Não se Compra (de
Frank Capra). Carlos Trigueiro comprova que esses frangões humanos com
livre trânsito nos Céus e na Terra ainda rendem muito, de um modo ou de
outro, especialmente quando se quer brincar com a condição humana.
Acho que todo mundo conhece o poema Isso é aquilo, do livro Lição das
Coisas, produto de Drummond já maduro, onde ele se limita a uma longa
enumeração que começa com o fácil o fóssil / o míssil o físsil e termina
com O cudelume Ulalume / o zunzum de Zeus / o bômbix / o ptyx. Cada
palavra colocada ali tem uma relação sonora com as demais, porém sempre
com outro sentido, provocando, pelo acúmulo, um efeito poético
extraordinário. Não é de graça que o anjo Mahlaliel diz, na segunda página
do livro de Trigueiro, na estória que tem o mesmo título da coletânea:
– Eu já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio
caminho entre a verdade e a versão.
Daí, talvez, que tenham tachado
esse malandro de rebelde, devasso e inconfidente, pelo que se viu obrigado
a abrir mão de trajes, acessórios, espaços, regalias, imagem,
invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas. Mais
adiante, especifica: Recolheram-me asas, vestes, halo, chancas, alabarda,
sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate.
Trigueiro me
passa a impressão de alguém que faz escrita automática, como a dos
surrealistas e dadaístas. Sexo dos anjos? Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo,
anjo frígido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os
que não estão nem aí para referências sexuais. A relação dos que Mahlaliel
já custodiou?: profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos,
diplomatas, reis, conquistadores... e plebeus, bandidos, políticos,
jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, escritores,
grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros.
Para disparar essa metralha vocabular, há que se ter imaginação
fervilhante, claro. O recurso, além de abrir a narrativa para uma
infinidade de roteiros colaterais, de repente, noutros pontos, dá a elas
uma velocidade frenética. No segundo conto, por exemplo, Miguel enviou o
currículo para agências de empregos, head-hunters, consultorias,
seguradoras, financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo resposta, fez
promessas para os santos protetores de negócios, rezou, acendeu velas,
jejuou, arquivou a libido. Geralmente, como se vê nesse caso e no da
nuvenzinha lembrando skate, a série termina com um tranco maroto. Bem
machadiano, isso.
No conto Obsessão, o personagem Peterson, que é
engenheiro, se sentia realizado em canteiros de obras, regendo conjunto de
bate-estacas, gruas, serras, tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo
cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor de operários, lidando com
mestres-de-obras mais sabidos do que mestres. Essa ironia, machadiana, é
exemplar em O Jornalista:
O Mercado é sensível a corrente de ar,
vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitação
públicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo...
Numa conversa a respeito de Confissões de um Anjo da Guarda que tive
com o professor de literatura brasileira da UFPB – o grande poeta Sérgio
de Castro Pinto – perguntei-lhe o que lhe lembrava esta declaração do
Carlos Trigueiro na estória Clínica para Normais:
A distância
custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de
paciência.
- Ora, Machado de Assis no capítulo XVII do Memórias
Póstumas de Brás Cubas: Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos
de réis.
Machadiano. Carlos Trigueiro é machadiano, claro, como
observo na análise que fiz ao seu romance Libido aos Pedaços. Observe,
novamente, estes trechos do capítulo XIII de Memórias Póstumas de Brás
Cubas:
... a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever,
contar, dar cacholetas, apanhá-las.
Tinha amarguras esse tempo;
tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.
Um velho
mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a
sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.
Vejo-te ainda
agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço
na mão, calva à mostras, barba raspada; vejo-te bufar, grunhir, absorver
uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante
vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do
Piolho.
A coisa vai longe.
A marca de Carlos Trigueiro,
porém, está na exasperação desse expediente. Na forma e no conteúdo. No
capítulo 21 do Livro dos Desmandamentos, por exemplo, há um parágrafo
antológico:
Sob o império dos atos institucionais, qualquer vacilo,
deslize ou equívoco no andar, falar, rezar, cantar, escrever, tocar,
pensar, respirar podia acabar mal. Um gaguejo podia ser interpretado como
linguagem subversiva codificada. Daí, vinte e dois mil, setecentos e
quarenta e oito gagos desapareceram sem terminar o que iam dizer. Outra
barbaridade sucedera àqueles que, por causa de um tique nervoso, piscaram
na hora errada: nove mil, setecentos e setenta e sete ficaram caolhos.
Veja-se este excerto do capítulo LXVII do mestre fluminense, em
Quincas Borba:
Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o
carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto
irresistível. Agora veja ação semelhante, desenvolvida num conto de
Confissões de um Anjo da Guarda – Anjos Exterminadores – cujo título, por
evocar uma das obras-primas de Buñuel, trai a influência do cinema nessa
exacerbação da técnica machadiana. Aí, o menor C.P.F., vulgo Papelote, sem
anjo da guarda, sobe, depois desce o morro na mesma carreira de assaltante
em fuga, e eu chamo a atenção para a velocidade da cena obtida pela
enumeração, o... pinturesco de tudo que nela se menciona, a carga
cinematográfica dessa disparada de fotogramas:
“Correu, correu,
dobrou, direita, esquerda, correu, correu, subiu a escadaria do morro,
subiu, saltou vala, pulou muro, mureta, atalhou daqui, dobrou dali, pulou
barranco, bicicleta, macumba, chutou cachorro, lata de lixo, vazou
birosca, barraco, derrubou porta, pulou janela, cerca, cercado”, etc, e,
na página seguinte, a volta: “correu morro abaixo, saltou vala, valeta,
pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa
de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal
esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e
correu, correu, correu....”
Genial.
É difícil conseguir a
marca registrada de um jeito de escrever, mesmo quando assimilado de
outro, que já parecia ter levado o macete às últimas consequências.
Difícil, mas não impossível. O arcanjo que se ajoelha diante da Virgem -
na Anunciação de Botticelli - nada tem a ver com o que aparece na tela de
Leonardo sobre o mesmo assunto, embora sejam ambos produtos do
Quattrocento. Carlos Trigueiro confirma, neste Confissões de um Anjo da
Guarda, seu virtuosismo narrativo, do tipo que você lê uma vez e a ele
retorna, intrigado, ansioso por saber como a coisa funciona.
Tenho
muitos nomes – diz um de seus notáveis personagens - Anjo Caído, Anjo
Rebelde, Belzebu, Satanás, Capeta, mas pode me chamar de Diabo. Fico mais
à vontade.
(RT, 25 de abril/2014) CooJornal nº 889
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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
wjsolha@gmail.com
Waldemar José Solha é escritor, poeta, dramaturgo,
roteirista, ator e artista plástico.
Recentemente, trabalhou no filme premiado internacionalmente ‘O SOM AO REDOR”,
de Kléber Mendonça Filho e em “Era uma vez eu, Verônica”.
wjsolha@superig.com.br
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