15/11/2014
Ano 18 - Número 915


 

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VIEGAS FERNANDES DA COSTA

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Viegas Fernandes da Costa



AS CIDADES DOS MEUS OLHOS

Viegas Fernandes - CooJornal




Gosto das cidades que ainda chamam suas ruas de caminhos. Caminho dos Pescadores, Caminho das vacas, Caminho dos Silva.

Daquelas cidades que batizam seus rios com poesia. Rio da Cova Triste, Rio do Canto das Cutias, Rio do Engano.

Das pequenas cidades que recordam histórias em cada esquina, no beco da velha torta, na curva do Curupira, na ladeira do pipoqueiro; ainda que suas velhas frequentem academias, que o pipoqueiro tenha sido autuado pela vigilância sanitária e que o Curupira já não nos assuste mais.

Cidades com personalidade não necessitam emprestá-la de ninguém. Suas vias não carregam nomes de comendadores e outros títulos nobiliárquicos, cuja nobreza perdeu-se dentre os penduricalhos inúteis da memória. No centro de suas praças, não há monumentos com relógios, e os joões-de-barro ainda constroem suas casas no alto da torre da igreja matriz, com seus sinos, suas beatas fuxiqueiras e seu padre lambuzado em pequenos pecados da carne.

Suas escolas ostentam com orgulho o nome da primeira professora, escrito na fachada em enormes letras de forma. Nada daqueles nomes de generais, ou dos membros de uma tal Academia de Letras cujos livros ninguém nunca leu. Lá, os alunos com dor de barriga são acarinhados com chá de boldo, de erva santa, servido pela merendeira. Não carece de chamar Samu, de deixar criança sofrer só porque o mundo moderno ensina que cabe ao médico, e só a ele, diagnosticar e receitar curas. Nossas velhas avós, afinal, nunca souberam nada. Milagre termos sobrevivido.

A propósito, é destas cidades repletas de avós que gosto mesmo. Destes avós espalhados pelas tardes, sob as árvores, em cadeiras de palha, tricotando, pitando cachimbos, embaralhando as peças do dominó. Ô vidinha! Dura, é verdade, que não esconde suas rugas, como as casas em que vivem: o quadro com a foto do casamento – retocada à mão – na parede da sala, o Sagrado Coração de Jesus na cozinha, as marcas do tempo manchando o caiado dos quartos.

Sei que estas cidades só existem nos desejos dos meus olhos. Que por trás das paredes simples, dos finais de tarde nas varandas, escondem-se as frustrações, as intrigas, o sofrimento das ausências. O sonho destas cidades que moram nos desejos dos meus olhos sempre foi emigrar. Na alma destas cidades está o espírito de Santana do Agreste, com seus pais expulsando filhas perdidas, seus poetas de versos famélicos, os suspiros de suas Carmosinas – Jorge Amado sabia das coisas! Todas estas pequenas cidades, que ainda chamam suas ruas de caminhos, têm também seus horizontes estreitos, mesmo quando construídas às margens do mar, ou com a testada virada para os imensos campos.

O que não me tira o gosto. Afinal, o que faz destas cidades tão especiais para meus olhos, é aquilo que meus olhos escolhem enxergar.


(15 de novembro/2014)
CooJornal nº 915



Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.




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