16/04/2024
Ano 27
Número 1.363


 

ARQUIVO
VIEGAS F. DA COSTA

Viegas Fernandes da Costa
 

Senhora "M"

 

Viegas Fernandes da Costa - CooJornal


Naquela laboriosa cidadezinha existe uma pequena indústria têxtil.
Apenas mais uma pequena indústria têxtil dentre tantas pequenas indústrias têxteis em uma cidade laboriosa de empresários justos e honestos.
Nesta pequena indústria têxtil a senhora "M" conseguiu um emprego na linha de produção.
Senhora "M", que tem família para sustentar e aluguel para pagar, não coube em si de tanta felicidade. Enfim um emprego, na fábrica, produzindo roupa para as prateleiras e araras de grandes marcas.
Sim, a pequena indústria têxtil produz a roupa depois etiquetada pela grife.
Um salário mínimo, mais vale alimentação e vale transporte, por oito horas diárias de trabalho. Senhora "M", que sabe os preços das coisas, também soube que o salário era baixo. Comparou, por exemplo, com o preço da calça na loja. O salário do mês mal poderia comprar três peças. Três peças ela ajudava a produzir em poucos minutos. Mas a principal conta da senhora "M" foi outra: as caixas de leite, os pães de sanduíche, o pacote de absorvente, o xarope da filha, uma parte do aluguel. Contou e viu que dava, com a ajuda do salário do marido, para sustentar a casa.
Senhora "M" começou a trabalhar nesta pequena indústria têxtil. Era quarta-feira e estava feliz.
Na sexta-feira o encarregado foi falar com ela. Explicou que a fábrica precisava que suas colaboradoras (sim, a senhora "M" descobriu que não existem mais empregadas ou operárias na fábrica, apenas colaboradoras) ajudassem em tudo que fosse necessário. Porque a fábrica - ressaltou - é como a casa da gente. Onde se precisa de mão, a mão deve estar.
Por isso senhora "M" foi promovida à passadeira.
Passadeira ganha mais, logo pensou. Passadeira passa as roupas, oito horas diárias, o que não é fácil. Mas sobra um pouquinho para, quem sabe, comprar a geladeira nova que estavam precisando.
Senhora "M" agradeceu. Começou na segunda-feira.
Na carteira de trabalho, porém, nada mudou. Nenhum carimbo novo.
"Termina a experiência e aí a gente te promove na carteira" - disse o encarregado.
Senhora "M" concordou. Quer dizer, não concordou exatamente. Aceitou. Pendurou a conta na farmácia. Pagaria o analgésico quando viesse a grana da promoção.
E assim foi, senhora "M" passando a roupa o dia todo. De noite, analgésico.
Hoje terminaria a experiência. Por isso, ontem, senhora "M", feliz, foi conversar com o encarregado. Perguntou a ele se já podia trazer a carteira de trabalho.
O encarregado respondeu que claro, podia, e disse que ela passava muito bem as roupas. Que melhor passadeira nunca se vira na fábrica.
Feliz, nesta manhã, senhora "M" bateu o cartão e foi direto na sala do departamento de Gestão de Pessoas. Na bolsa, a carteira de trabalho.
Hoje, senhora "M" não precisou passar roupa.
Senhora "M" foi demitida.
E em algum lugar daquela laboriosa cidadezinha de empresários justos e honestos (mas também poderia ser em qualquer outra cidade), dorme feliz outra senhora "M", recém contratada, ignorando que pelos próximos três meses venderá sua vida com as mãos em um ferro de passar roupas.

 

Comentários podem ser enviado ao autor em viegasfernandesdacosta@gmail.com


Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Nasceu no ano de 1977 em Blumenau (SC) e atualmente mora em Nossa Senhora do Desterro (cidade também conhecida pelo nome de Florianópolis) onde leciona História no Instituto Federal de Santa Catarina. É autor dos livros: Sob a luz do farol (2005), De espantalhos e pedras também se faz um poema (2008), Pequeno álbum (2009), Sob a sombra da Tabacaria (2015) e Coliseu tropical (2021). Seu livro Sob a sombra da Tabacaria recebeu o Prêmio Catarinense de Literatura.


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