01/08/2021
Ano 24
Número 1.234


 

ARQUIVO
SHEILA SACKS

Venha nos
visitar no Facebook

Sheila Sacks



O uso inapropriado do termo genocídio




Sheila Sacks, colunista - CooJornal






Políticos, intelectuais e formadores de opinião mal intencionados têm se apropriado do termo “genocídio” para qualificar as mais de 550 mil mortes por Covid-19 ocorridas no país. Mas, o real entendimento sobre o que é genocídio pode ser sentido no que vem ocorrendo na região de Xinjiang, na China, em relação à etnia dos uigures. Uma política de estado há anos vem massacrando esse grupo étnico, por meio de perseguição religiosa, instalação de campos de confinamento, prisões arbitrárias, tortura, estupros e desaparecimento de civis.

O estado de Israel, para onde acorreu a maioria dos sobreviventes do regime nazista que dizimou um terço da população judaica na Segunda Grande Guerra (1939-1945), votou em junho último contra a China no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ainda que ambos os países mantenham um forte comércio bilateral e a China seja o segundo maior investidor em Israel, depois dos Estados Unidos, o que está acontecendo com os uigures, classificado por estudiosos de vários países como genocídio, acendeu o sinal de alerta para a diplomacia israelense.


Voto contra a China

Deixando à parte o lado comercial, que em 2020 cresceu 20% entre os dois países e atingiu 17,5 bilhões de dólares, Israel seguiu os Estados Unidos em seu voto no Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC, na sigla em inglês) que condenou a China por abusos contra muçulmanos que vivem na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no noroeste do país.

A região, anexada pela China em 1949, abriga os uigures, de origem turcomana, maior grupo étnico local, que professa o islamismo. De acordo com o Departamento de Estado dos EUA, acredita-se que até dois milhões de uigures e outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de centros de detenção em toda a região. Ex-prisioneiros relatam que foram sujeitos à doutrinação, tortura e até esterilização.

Recentemente, em 9 de julho, milhares de uigures exilados se reuniram em várias capitais para protestar contra a manutenção desses campos, as prisões arbitrárias, a repressão e perseguições violentas, a internação em massa e o desaparecimento de cidadãos civis. Eles também lembraram o conflito ocorrido há doze anos, em Xinjiang, que resultou em centenas de mortos e feridos.

Em Londres, além de clamar por justiça e pela ajuda das nações ocidentais, a manifestação foi liderada por Rahima Mahmut, diretora do Congresso Mundial Uigur, e Sheldon Storne, conselheiro da mesma organização que luta pelos direitos humanos e pela liberdade religiosa em Xinjiang (ou Turquestão Oriental para os uigures). Storne é um médico britânico de origem judaica que dirige a campanha STOPUYGHURGENOCIDE, em Londres.

Crime de genocídio

Relatório independente divulgado em março pela ONG Newlines Institute for Strategy and Policy, sediada em Washington, também traz graves acusações à China e afirma que “o governo chinês tem a responsabilidade de estado por um genocídio em curso contra os uigures em violação à Convenção da ONU para a Prevenção e a Repressão do Crime do Genocídio”.

De acordo com a plataforma digital da rede de notícias americana CNN (9/3/2021), o documento contou com a participação de uma equipe de 50 especialistas em direitos humanos que analisou milhares de depoimentos de testemunhas oculares de exilados uigures e documentos oficiais do governo chinês.

A assessora jurídica do Raoul Wallenberg Center for Human Rights, Yonah Diamond, que também contribuiu com o relatório, alerta para o real entendimento sobre o que é genocídio. Ela explica que não é preciso ter provas de assassinato em massa ou extermínio físico de um povo, sendo suficiente ter evidências claras e convincentes de que há uma intenção deliberada de destruir um grupo tal como ele é. A ONG, sediada em Montreal, no Canadá, leva o nome do diplomata sueco que salvou do genocídio nazista cerca de 100 mil judeus na Hungria.

Instituída pela Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1948, a convenção destaca em seu artigo 2, como crime de genocídio, a intenção deliberada, por parte do Estado, de eliminar grupos étnicos, religiosos, nacionais ou raciais. Por sua vez, a China nega as acusações de violação de direitos humanos e afirma “que os centros são necessários para prevenir o extremismo religioso e o terrorismo”. Intitulados por Pequim de “centros de treinamento vocacional”, esses campos são descritos pelo governo como locais de reeducação, visando a desradicalização em massa e com ensino obrigatório de mandarim.

Desde 2014, mais de 1.400 centros foram instalados em Xinjiang e segundo relatos de ex-presos uigures os detidos são submetidos à tortura psicológica, lavagem cerebral e cultural, agressões sexuais, privação de comida por longos períodos e confinamento solitário. Em documentos oficiais pesquisados, o relatório aponta que os uigures e outras minorias muçulmanas são chamados de “ervas daninhas” e “tumores”.

Essa política estatal se consolidou a partir de um ataque extremista praticado por separatistas uigures, em 2014. Naquela ocasião, o presidente chinês Xi Jinping visitou a região e, segundo documentos revelados pelo jornal New York Times, determinou às autoridades locais que combatessem o radicalismo “sem misericórdia”. A região faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão e autoridades chinesas alegam que os uigures têm ligações com o grupo terrorista Al-Qaeda.

A reportagem da CNN informa ainda que no penúltimo dia na presidência dos Estados Unidos, em 19 de janeiro, o governo de Donald Trump declarou que o governo chinês estava cometendo genocídio em Xinjiang. Um mês depois, os parlamentos da Holanda e do Canadá aprovaram moções contra China. Também a União Europeia (UE) após ser criticada pelos Estados Unidos por ser manter em silêncio em relação ao caso, impôs sanções a quatro autoridades chinesas por envolvimento em violações de direitos humanos na região. As medidas incluem proibições de viagens a países da UE e o congelamento de ativos.


Relatos brutais

Majoritariamente muçulmanos, os uigures chegam a 11 milhões em Xinjiang, região vizinha ao Cazaquistão, berço das etnias cazaques. A rede britânica de notícias BBC News ouviu o relato de mulheres uigures que foram presas e passaram meses detidas nos chamados campos de “reeducação”.

Já no início da reportagem, um aviso incomum aos leitores: “Alerta: você pode considerar perturbadores alguns dos detalhes desta reportagem.” Isso porque são narradas histórias brutais de estupros, choques elétricos, ingestão acentuada de remédios, tortura, confissões forçadas e esterilização massiva. As ex-detentas, que atualmente residem em outros países, também revelam que tiveram seus cabelos cortados e eram obrigadas a cantar canções patrióticas e assistir programas doutrinários da TV estatal (‘Uigures em campos de reeducação na China relatam estupros sistemáticos’, em 5/2/2021).

Uma das presas, Tursunay Ziawudun, ficou nove meses detida e depois de libertada fugiu para os Estados Unidos. Ela conta que devidos aos abusos sexuais muitas mulheres se tornam alcoólatras e têm problemas mentais. "Dizem que as pessoas são libertadas, mas na minha opinião todos os que deixam os campos estão acabados”, afirma. Devido à sucessão de estupros, Ziawudun teve que retirar o útero.

Outros tipos de violência contra os uigures também têm sido denunciados por estudiosos e ativistas na mídia ocidental. O sociólogo italiano Massimo Introvigne, autor de um livro sobre as perseguições religiosas na China (‘Il libro nero della persecuzione religiosa in Cina’), de 2019, denuncia que cópias do Alcorão têm sido confiscadas e queimadas pela polícia em Xinjiang. Para fugir da ação dos agentes policiais, livros de rezas são enterrados ou mesmo colocados nos rios pelas vítimas, embrulhados em plástico, na tentativa de evitar que sejam profanados.

Fundador do Centro de Estudos sobre Novas Religiões (CESNUR, na sigla em inglês), Introvigne lembra que em dezembro do ano passado (2020) entrou em vigor um novo regulamento que limita com rigor a peregrinação anual dos muçulmanos à Meca, com o estabelecimento de cotas e a avaliação investigativa dos proponentes à peregrinação. O documento editado pela “Administração Estatal de Assuntos Religiosos” impõe um controle mais rígido às viagens. Peregrinações “não oficiais”, sem o aval do governo chinês, são consideradas atitudes criminosas e severamente punidas.


Sheila Sacks é jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
http://sheilasacks.blogspot.com

 


Direitos Reservados. É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.